29.8.06

Eugène Delacroix

Num casarão da praça Fürstenberg, em Saint-Germain-des-Prés, na margem esquerda do Sena, um homem franzino, doente e inquieto, vestido em peliças e grossas mantas de lã, está mergulhado no trabalho. Jenny, sua fiel e velha governanta, recebeu ordens severas para não deixar entrar visitas importunas. O trabalho - pintar e escrever - deve ser perturbado o menos possível. É um rito, um ato de magia. Por meio desse trabalho, pelo que significa em criação e expansão de sentimentos, é que a realidade pode ser subjetivamente transfigurada para amoldar-se às exigências da fantasia. Pela arte, pensa o homem, é que o cotidiano pode ser afugentado. Por meio da arte é que podem ganhar forma os devaneios de glória e aventura, de paixões e sacrifícios. E esse ideal romântico, pensa também, é o único a dar sentido à existência.

Não é de admirar que Ferdinand Victor Eugène Delacroix acreditasse em tais idéias. Afinal, eram as idéias de seu meio e de seu tempo. Eram compartilhadas - ou melhor, sentidas - por muita gente ilustre, por escritores, como Stendhal, Victor Hugo, Alexandre Dumas; poetas, como Baudelaire; compositores, como Paganini e Chopin. Afinal, eram as idéias de Paris de meados do século XIX. Haviam dado alento à luta pela liberdade e pelos direitos do indivíduo, na Revolução Republicana; nutriram-se nos delírios de grandeza de Napoleão; e depois da humilhação de Waterloo ressurgiram nos salões sofisticados, assim como ressurgira o nome dos Bourbon no trono da França.
Nas artes, os românticos foram os primeiros a pôr em questão os ideais clássicos, herdados da Grécia e de Roma pela via do Renascimento. Defenderam a concepção de que o valor de uma obra não devia ser medido pelo respeito a regras cristalizadas e substancialmente acadêmicas, mas em vista da emoção que pode provocar. Um artista - diziam - não se avalia por sua afinidade aos padrões antigos ou por seu grau de aproximação a modelos clássicos, mas sim de acordo com sua originalidade. Nesse sentido, o Romantismo foi um movimento renovador, que multiplicou as possibilidades de expressão nas artes em geral, principalmente na literatura e na música.
Na pintura, nem tanto.

Exceção feita a Delacroix, Géricault e alguns outros nomes, a linguagem da pintura francesa permaneceu quase inalterada. Só com a revolução realista a partir da segunda metade do século XIX é que os cânones tradicionais receberiam o golpe fatal. O Romantismo na pintura traduziu-se principalmente numa troca de roupas: as túnicas greco-romanas que vestiam os personagens focalizados foram substituídas pelas armaduras dos guerreiros medievais. Os heróis míticos cederam lugar aos cavaleiros cristãos, defensores das nacionalidades européias.
E na virada do século XVIII é justamente o nacionalismo - despertado pela Revolução Francesa e fortalecido pelos projetos de Bonaparte - que dá o tom nas idéias políticas.
Mesmo Delacroix, pensasse o que pensasse, não chegou a ser um pintor romântico no pleno sentido da palavra. Apesar de seu amor pela aventura, seu fascínio pelo Oriente fantástico, seu interesse desmedido por tudo o que fosse exótico, não voltou as costas aos antigos mestres. Como qualquer artista acadêmico, freqüentou os museus para copiar os grandes do passado. Nem se furtou em suas obras às sugestões mitológicas da Antigüidade. Ficou a meio caminho entre a lealdade cultural ao mundo clássico e a necessidade de exprimir o mundo interior, rico de sensibilidade e imaginação. Quando a subjetividade prevalecia, conseguia desprezar as regras ortodoxas. E o resultado era uma
pintura original e profundamente renovadora.
Renovação era a palavra que corria de boca em boca na França dos últimos anos do século XVIII, tirando seu alento dos feitos do novo comandante do exército, o pequeno general corso que se chamava Napoleão. Em 1798, um ano antes do golpe de Estado que o levaria ao poder, Napoleão chefiava as tropas da República na campanha do Egito; naquele ano, a 26 de abril, na localidade de Charenton-Saint-Maurice, perto de Paris, nascia Delacroix.
O menino foi registrado com o nome de Ferdinand Victor Eugène, filho de Charles Delacroix e Victoire Delacroix. Ele, importante figura política, ex-deputado, ex-
ministro das Relações Exteriores, então embaixador da França junto ao Governo holandês. Ela, jovem e bonita dama da alta sociedade, filha do decorador alemão Oeben, desenhista de móveis na corte de Luís XV e Luís XVI.
Entretanto, os historiadores menos discretos têm outra versão quanto à paternidade de Eugène. O futuro pintor, afirmam, era filho ilegítimo de Talleyrand, que se tomaria célebre como chanceler de Napoleão e que, graças à sua extraordinária habilidade política, manteria o lugar mesmo depois da queda do imperador e passaria à história com o apelido de "Diabo Coxo".

Charles Delacroix era um homem doente e viria a falecer em 1805. No ano seguinte, a viúva mudou-se para Paris e matriculou o filho no Liceu Imperial, como fora rebatizado o velho e aristocrático Liceu Louis le Grand, do Quartier Latin. Personalidades de destaque na política, nas finanças e na arte haviam passado por esse colégio. Poucos anos antes de Delacroix, ali estudara Géricault, cujas futuras obras apressariam a transformação da pintura francesa e que seria um dos amigos mais chegados de Eugène. O forte do liceu eram as letras clássicas. Mas o forte do aluno Delacroix revelou-se outro: o desenho. Um seu tio, H. F. Riesener, também pintor, percebe - e estimula - a extraordinária vocação do rapaz. Leva-o ao estúdio de outro colega, o neoclássico Guérin, de quem Eugène aprenderá
as técnicas e os truques da arte de pintar, mas não o estilo ou a concepção de pintura. Mais por uma questão de temperamento do que por uma avaliação intelectual dos trabalhos, Delacroix sente-se atraído por Veronese, Tintoretto,
Goya e Rubens, cujas obras pode ver nos museus de Paris, e os prefere a um Rafael ou a outros mestres consagrados e em evidência na época.
O temperamento é um dado fundamental na história do pintor. Como escreveria seu amigo e crítico, o poeta Baudelaire, "a biografia de Eugène Delacroix é pouco movimentada. Para um homem como ele, pleno de tal coragem e de tal paixão, as lutas mais interessantes são as que deve sustentar contra si próprio". São os sentimentos, não tanto os fatos, que determinam as atitudes do artista. Se isso vale para Delacroix adulto, não vale para Delacroix mocinho. Pelo menos, a ser verdade o que narra o escritor romântico Alexandre Dumas: que, até os treze anos, escapou de morrer por estrangulamento, incêndio, afogamento, envenenamento e sufocamento: o responsável involuntário pelo estrangulamento foi seu próprio irmão mais velho, oficial de cavalaria, que por brincadeira o suspendeu amarrando-lhe as rédeas do cavalo ao pescoço e depois soltou-o de chofre. Eugène ficou preso sem que os pés atingissem o chão, como um enforcado.
O incêndio ocorreu quando Eugène dormia: o mosquiteiro da cama pegou fogo; mas as queimaduras foram leves. O afogamento deu-se no mar. O garoto escapou dos braços da ama e uma onda mais forte quase o levou de vez. Ele também não sabia que tinta é substância altamente tóxica; tanto assim que um belo dia resolveu ingerir o conteúdo de um tubo de tinta de pintura. Escapou por pouco.
Finalmente, ao engolir gulosa e apressadamente um cacho de uvas, ficou com algumas entaladas na garganta; não fosse alguém acudir imediatamente e as conseqüências poderiam ser menos anedóticas.
Em todo o caso, superadas bravamente tais peripécias, Delacroix desenvolve seu aprendizado cada vez mais na direção de um afastamento dos padrões clássicos, guiado por artistas inovadores como Gros, Gérard e - sobretudo - Géricault, que sentiram no jovem o talento e a inquietação. Com o tempo, Delacroix viu-se cada vez mais ligado a Géricault: o jovem - então com 21 anos - aceitou posar para
um quadro de seu mestre, A Balsa da Medusa, que daria muito o que falar, abrindo formalmente as hostilidades entre os seguidores da linha neoclássica e os adeptos da nova escola - os românticos. Enviado ao Salão Oficial, a Balsa da Medusa sofreu cerrados ataques dos críticos ortodoxos; os adjetivos dirigidos a Gericault não foram dos mais brandos. Nessa querela, o ainda desconhecido Eugéne Delacroix interveio a favor do artista e acusou seus acusadores: foi a única vez que Delacroix participou ativamente das polêmicas estéticas. Nos anos vindouros, outros artistas brigarão por ele.
Em 1822, após ter realizado algumas obras de temas sacros, resolveu enviar sua primeira tela ao Salão. É Dante e Virgílio no Inferno (prancha 1), onde se vêem as influências do discutido trabalho de Géricault. imediatamente, o pintor de 24 anos polariza sobre si a atenção geral e afirma-se como o expoente de uma nova tendência, a resposta mais brilhante ao consagrado Ingres, mestre do Neoclassicismo. Não que o estilo tradicional tenha deixado de existir nessa obra de estréia, mas as cores vivas, o movimento dos personagens, as luzes do horizonte indicam já uma orientação diferente.
Essa orientação fica ainda mais explícita com Dois. Indianos, pintado em 1823. Este quadro revela gosto de Deslacrais pelo exótico - na própria escolha do tema - e, mais que isso, sua habilidade como pintor, seu espírito independente, a espontaneidade com que é capaz de cercar as figuras da pequena tela. Fugindo às descrições de moradas - e cerebrais - prefere captar as emoções dos retratados com toques rápidos e sugestivos, conseguindo ainda um efeito de primeira ordem ao contrastar o branco da vestimentas com o fundo sombrio.

No ano seguinte, Delacroix produz Os Massacres de Quios, quadro de inspiração literária, e enviado ao Salão. Reabre-se a polêmica: os críticos acadêmicos, o
mestres oficiais, decididamente torcem o nariz ante a obra Afinal, aceito o quadro, Delacroix ainda introduz nele algumas modificações, provocadas pela descoberta do inglês Constable: naqueles dias, o pintor fazia uma exposição em Paris e Delacroix, ao vê-la, é tomado pelo maior dos entusiasmos, a ponto de aproveitar as lições do pintor estrangeiro mesmo numa obra já realizada.

Tomando como tema as perseguições sofridas pelo povo grego sob o jugo turco - assunto sobre o qual Delacroix fizera algumas leituras -, Os Massacres de Quios mostra claramente o que os contemporâneos do artista não souberam ver: que a arte de Delacroix, conquanto fosse inovador estava longe de assumir um caráter revolucionário ou significar um rompimento radical com a pintura clássica. São teatrais as atitudes dos personagens. Sua disposição segue o figurino tradicional. Mesmo as cores - exageradamente violentas aos olhos rigorosos da sobriedade acadêmica - não conflitam com a estética vigente. A novidade localiza-se mais no tratamento realista dos detalhes - e este se de principalmente às alterações motivadas pelo contato com os trabalhos de Constable.
Delacroix sente-se de tal modo atraído pela pintura do inglês que se decide a atravessar a Mancha. Em 1825 embarca para a Inglaterra, onde passa alguns meses, admirando as paisagens, lendo o clássico Shakespeare e o romântico Byron. De volta à França, freqüenta os ambientes mais requintados da época. Elegante e simpático, torna-se amigo de celebridades do mundo artístico, entre as quais Frédéric Chopin e sua companheira George Sand. Delacroix os retratou juntos, embora mais tarde a tela viesse a ser cortada, restando apenas a cabeça do compositor.
O êxito de Delacroix não se limitava aos salões. Como bom romântico, não lhe faltaram ligações afetivas - arrebatadas todas, duradoura nenhuma: os modelos Émile e Laure, a loira e delgada Mademoiselle Mars, a misteriosa Madame Dalton, Madame de Forgette (sua prima) e, por fim, Madame de Boulanger, com quem até fugiria - na melhor tradição dos mitos românticos - para o exterior, chegando à Bélgica e Holanda.
Em 1827, Delacroix apresenta o que seria um de seus melhores quadros, um dos raros que não se ressentem de inspirações literárias ou retóricas. É a Natureza-Morta com Lagostas. Cor, desenho e composição inteiram-se numa unidade total - e poética. Paisagem, personagens, peças de caça conjugam-se como instrumentos numa orquestra afinada. Poucas vezes terá o artista consegui-lo explicar-se tão bem com uma pintura, exprimindo plenamente seus princípios reformistas. Aqui, ele abandona a literatura e cria uma mensagem baseada em recursos exclusivamente visuais. Aqui, Delacroix é absolutamente fiel à sua própria crença de que "o primeiro mérito de um quadro é ter sido feito para o olho".
Bem diverso, embora acabado naquele mesmo ano, é A forte de Sardanapalo, obra imensa, teatralizada, grandiloqüente, decadentista como uma dança dos sete véus. Inspirada na poesia de Byron, descreve o assassínio do velho rei assírio durante uma orgia. Entretanto, os corpos nus e retorcidos, o emaranhado de membros humanos, o tumulto da cena pelo exagero de elementos, acabam redimidos pelo hábil uso das cores, revelando a maturidade do pintor - então com 29 anos.

Em 1828, dá-se o acontecimento talvez mais importante na vida de Delacroix: sua visita ao Marrocos, como membro da delegação que acompanha o Conde de Momay, embaixador da França junto ao sultão daquele país. A missão do artista é documentar gente, terra e costumes, mas a importância do fato está menos nas vantagens que trará ao pintor nos círculos políticos e diplomáticos e mais em termos da expansão de seus sentimentos: o Marrocos, na visão de Delacroix, é o sonho feito existência, o mistério, o exótico, o diferente da cultura e da civilização a que está habituado e que, no fundo, o entediam. O Marrocos é a grande oportunidade que se oferece ao artista: permite que pinte não só sob inspiração de experiências literárias, intelectuais, formalizantes, mas com base em experiências pessoais, sentidas, vividas. Espontâneas.
As Mulheres de Argel é seu primeiro trabalho que reflete essa vivência. Embora os críticos façam reparos ao aproveitamento das cores - dizendo que as soluções encontradas aqui por Delacroix poderiam ser mais felizes -, é inegável a espontaneidade da obra. A maneira natural com que a cena é descrita, atingindo dimensões realistas, transmite o sentido direto da relação entre o pintor e seu tema. A literatura e o esforço de reconstrução histórica estão diluídos.
O mesmo acontece com A Agitação em Tânger , pintado por volta de 1837/38, ou seja, cerca de quatro anos depois de As Mulheres de Argel. Agora, apura-se ainda mais a expressão do artista, sua percepção apaixonada das coisas: a massa das pessoas, o céu transparente, as casas intensamente iluminadas, o jogo de luzes e sombras transmitem uma vibração sentida, que algumas décadas mais tarde explodiria no Impressionismo.
Nem sempre, porém, Delacroix poderá manter-se nesse rumo, devido às encomendas oficiais que receberá para a execução de grandes pinturas decorativas sobre motivos históricos. Até o fim da vida, sua arte consistirá numa intercalação de trabalhos poéticos, de inspiração subjetiva, e de pinturas grandiosas, narração de episódios militares, lendas medievais e mitologia pagã.
As encomendas oficiais vieram provavelmente em conseqüência dos desenhos e esboços que Delacroix enviou do Marrocos e que chamaram a atenção das personalidades públicas ligadas ao Governo. Entre elas estava o primeiro-ministro de Luís Filipe, o historiador Thiers, que já conhecia o artista havia muitos anos e o defendera, escrevendo entusiasmado artigo, contra os que criticavam em 1822
Dante e Virgílio no Inferno. Quando o pintor volta do Marrocos, os convites não tardam. Em 1833 recebe de Thiers a incumbência de pintar o Salão do Rei; em 1838, novo pedido, desta vez para decorar a biblioteca do Palácio Bourbon, sede da Câmara dos Deputados. Passam-se dois anos, outra encomenda: pintura da cúpula e de um hemiciclo no Palácio do Luxemburgo, então sede da Câmara Alta. Mas Delacroix não ficara esperando solicitações oficiais para dedicar-se a temas cívicos e políticos. Numa ocasião, voltara-se a eles espontaneamente. É julho de 1830, eclode a revolução que derruba Carlos X do trono e o substitui por Luís Filipe, filho do Duque de Orléans, chamado "Philippe Égalité" por haver participado da Revolução de 1789. O aristocrático Delacroix não participa das escaramuças. Entretanto, entusiasma-se com os acontecimentos e, tomado de súbitos amores pela democracia, pinta A Liberdade Guiando o Povo, um verdadeiro manifesto de propaganda, cujo valor - enquanto pintura - reside não na retórica mas na habilidade que o artista revela no manejo das cores. Detalhe curioso da obra é que o próprio pintor nela se fez retratar: o jovem de cartola e fuzil na mão é Delacroix.
Contudo, bem diversos serão seus sentimentos políticos na Revolução de 1848. Quando o povo invade as Tulherias e o Palais-Royal, incendiando, entre outros, o Richelieu Dizendo a Missa, do próprio Delacroix, este escreve: "O homem nasceu livre? Por mais filósofo que seja Rousseau, ninguém jamais disse maior asneira. E, no entanto, tal é a base filosófica desses senhores (os revolucionários)".
De qualquer forma, A Liberdade Guiando o Povo fecha o ciclo das quatro grandes telas de juventude (as outras são Dante e Virgílio no Inferno, Os Massacres de Quios e A Morte de Sardanapalo), que, apesar de todas as polêmicas que possam ter suscitado entre os críticos, ou talvez por causa delas mesmo, fizeram Delacroix famoso aos trinta anos de idade. Passado e futuro encontram-se nesses quatro enormes trabalhos de inspiração patriótica ou literária: a execução e os detalhes são tradicionais; a composição e o desenho, renovadores.
Em 1842, entre as encomendas reais e as saudosas lembranças da África (à qual Delacroix chamava "Oriente"), um inesperado interlúdio surge em sua obra. Talvez por fadiga, talvez por querer distanciar-se um pouco do grandioso ou do exótico, pinta A Educação da Virgem (prancha IX), em que o tema sacro - tão raro em Delacroix - é tratado de forma a sugerir meditação concentrada e atenta, calma e harmonia. Como se um momento de paz e serenidade ocupasse o espírito inquieto do artista. Mas é uma pausa breve. Mesmo quando o pintor retoma o universo religioso, com o Cristo no Lago Genesaré (prancha XIII), a agitação novamente aparece: as luzes percorrendo os corpos movimentados, as ondas altas, o barco perigosamente inclinado exprimem uma turbulência que só é quebrada pelo sono tranqüilo de Jesus, como a indicar que a fé é mais poderosa que a angústia da morte.

Delacroix é agora um homem de cinqüenta anos. A fama e o reconhecimento oficial (em 1849 passa a fazer parte do júri do Salão) não lhe atenuam os sonhos e os conflitos íntimos, da mesma forma como a doença (a então incurável laringite tuberculosa) não lhe afeta a espantosa capacidade de trabalho, da mesma forma como a necessidade que experimenta de recolher-se mais e mais não sufoca o antigo desejo de viajar: em 1850 volta à Bélgica, onde revê seus tão queridos quadros de Rubens. Aproveita a ocasião e estendi seu roteiro até a Alemanha. Quando regressa - infatigável -, começa a decoração do Museu do Louvre. Quando termina, lança-se à decoração do Salão da Paz, no Hotel di Ville. E escreve: cartas, artigos, um diário começado na juventude e interrompido de 1824 a 1847, apreciações críticas etc. E pinta seus delírios, suas lutas interiores, suas ansiedades. Em 1855, eles rebentam com A Caça aos Leões. Os tradicionalistas ficam chocados: "É um caos de tons!", exclamam. "Um absurdo tantos vermelhos, verdes, amarelos, violetas..." Baudelaire, o "poeta maldito", lhes responderá: "Jamais cores tão intensas penetraram até a alma pelo canal dos olhos". Três anos mais tarde, outro quadro, o mesmo título, as mesmas emoções, o mesmo conflito.
O "Rubens doente", "o homem do colete verde" - assim seus contemporâneos o chamavam - quase não abandona o estúdio na praça Fürstenberg. Trabalha o dia inteiro: "Que fazer no mundo, além de embebedar-se, quando chega o momento em que a realidade não está à altura do sonho?" Um dos raros amigos a quem Delacroix permite visitá-lo nota que o pintor vive ultra-agasalhado, embora o ambiente esteja tão aquecido "que até cobras poderiam ali viver felizes".

Nessa fornalha calafetada, trocada de tempos em tempo por uma estada na casa de campo em Champrosay, perto de Paris, tendo por companhia apenas sua governanta, o artista produz seus últimos trabalhos. Da lembrança do Oriente surgem Cavalos Saindo do Mar . Não é a pintura de um sexagenário. É uma alvorada de vigorosa juventude, a mesma juventude de espírito que o artista manteria até o fim. E o fim se deu a 13 de agosto de 1863. Delacroix tinha 65 anos.

24.8.06

A Rasa arrasa na França

José do Carmo Filho

23/08/2006 - Carmen Rodrigues Tatsch
Desde 2001 venho desenvolvendo pesquisa-ação, método de pesquisa que inclui a ação social, na comunidade da Rasa, Búzios. Inicialmente era um projeto de pós-doutorado vinculado à Escola de Comunicação da UFRJ. A partir de 2005, esta pesquisa passou a estar articulada à Universidade Veiga de Almeida. Em ambos projetos contamos com o apoio da FAPERJ.
O projeto visa a promoção de saúde mental e de bem-estar da comunidade e coloca em foco a questão do aumento da auto-estima, da valorização da história e da cultura da Rasa e da reelaboração das identidades. Com o decorrer da pesquisa, percebemos que não seria possível a melhoria da qualidade de vida se não incluíssemos a questão da geração de renda.
Neste momento, estamos trabalhando, juntamente com lideranças comunitárias, em um processo de auto-gestão, na implantação de um circuito turístico histórico-ecológico-antropológico e na criação do Centro Cultural da Rasa, onde todas as associações desta região estarão representadas e diversos produtos ali poderão ser comercializados.
Em julho de 2006 fui convidada a realizar palestra sobre esta pesquisa no Colóquio de Análise Institucional, na Universidade de Paris 8, França. Os especialistas ficaram entusiasmados com a complexidade metodológica da pesquisa e com a diversidade cultural da região. O prof. Remi Hess, diretor do Laboratório de Análise Institucional desta universidade, comentou sobre os vários níveis de ação e de análise do projeto que se cruzam e que apontam para diversos caminhos teórico/práticos. A profª Luccette Colin, apontou a importância de uma pesquisa que desenvolve, ao mesmo tempo, um enfoque político e subjetivo; que trabalha a questão da cidadania e também da identidade. O prof. Patrice Ville destacou a questão do saber que, em nossa proposta, não está somente do lado da ciência, da academia, mas também do lado das pessoas que participam do projeto.
Logo a seguir, fomos apresentar este trabalho no Departamento de Psicologia da Universidade de Toulouse, França. Novamente, a Rasa arrasou. Os especialistas presentes enfocaram especialmente a questão da relação entre a equipe de pesquisa e dos sujeitos pesquisados. Relatam experiências onde há mudanças de comportamento.

13.8.06

Leonardo Da Vinci

Pintor italiano, foi o maior retratista de seu tempo; nenhum artista antes dele havia capturado de maneira tão convincente a vivacidade das feições e o espírito individual.


Leonardo Da Vinci resumiu o ideal renascentista do polímata - artista, contador de anedotas, músico, cientista, matemático e engenheiro -, um homem de muitos talentos, com uma insaciável curiosidade e sede de conhecimento.

Nasceu em Anchiano, um vilarejo perto da cidadezinha de Vinci, em 15 de abril de 1452. Filho de um tabelião e de uma camponesa, Catarina, com quem o pai tinha uma ligação um tanto irregular. Leonardo cresceu no campo, onde desenvolveu um grande amor pela natureza. Quando menino pediram-lhe que desenhasse um escudo para um amigo do pai. Dizem que ele fez um bestiário extraordinário, baseado na observação real de lagartos, grilos, cobras, borboletas, gafanhotos e morcegos. Segundo os registros, foi nesta ocasião que ele revelou seu fascínio pelas formas móveis, retorcidas e vivas. Está registrado também que ele gostava de cavalos e os conhecia profundamente. Eles aparecem com tanto destaque nos seus trabalhos da maturidade que isto parece ser bastante provável.

Algum tempo antes de 1469, Leonardo foi com pai morar em Florença e, em 1472, foi aceito como membro da guilda de São Lucas, a guilda dos pintores. Seu mestre foi Andrea Verrocchio, e os registros mostram que ele continuava empregado na oficina de Verrocchio, na vila dell'Agnolo, em 1476.

É difícil avaliar a influência de Verrocchio sobre o jovem Leonardo. As formas curvas e retorcidas usadas pelo mestre certamente encontraram eco no seu aluno. As pinturas de Verrocchio possuem uma certa grandiosidade, mas não despertam realmente a imaginação, enquanto que as esculturas são mais fortes e parecem ter influenciado mais Leonardo.


Não existem provas consistentes de quando Leonardo foi para Milão, mas a primeira encomenda lá, documentada, é de 1483. O motivo da sua ida para aquela cidade não está claro; mas ele pode ter se sentido atraído pela estimulante atmosfera da corte dos Sforza, com muitos médicos, cientistas, engenheiros militares e matemáticos. Havia outros motivos para ele deixar Florença: os altos impostos faziam com que alguns mecenas nunca pagassem pelo trabalho que encomendavam; a competição profissional era extremamente dura; e a guerra e a peste eram fortes ameaças físicas.

Leonardo se estabeleceu na corte do Duque Lodovico, onde, além de pintar, seu protetor exigia seus serviços para diferentes tarefas - supervisionar pagens e instalar "aquecimento central", por exemplo. Este tipo de papel deve ter agradado imensamente tanto ao caráter quanto ao intelecto de Leonardo. De fato, numa carta, ele se descreve como engenheiro e, só de passagem, faz uma referência às suas pinturas. Durante este período também pintou retratos, executou uma importante encomenda, A Última ceia, e terminou grande parte do trabalho preliminar para o monumento aos Sforza, que nunca chegou a ser fundido.

Em 2 de outubro de 1498, Leonardo recebeu um propriedade fora da Porta Vercellina de Milão e foi indicado ingenere camerale. Esperava-se uma invasão dos franceses e ele ficou muito ocupado planejando a defesa da cidade, embora dois outros grandes trabalhos datem deste mesmo período. Colaborou também com o matemático Luca Pacioli na Divina Proprotione - os dois homens tinham ficado muito amigos desde a chegada de Pacioli a Milão.

Os franceses invadiram Milão em 1499 e Lodovico foi preso e enviado para França. Leonardo, junto com Luca Pacioli, deixou Milão depois de 18 anos com os Sforza. Provavelmente foi direto para Mântua, onde fez o retrato de Isabella D'Este. Em 24 de abril de 1500, ele voltou para Florença e encontrou uma cidade diferente da que tinha deixado cerca de 20 anos antes, passando por uma onda de revitalização do interesse religioso e com idéias republicanas na política. Leonardo conquistou quase de imediato o agrado do público, após exibir o seu cartão da Virgem e Sant'Ana planejado para ser um retábulo. Nesta época, Michelangelo tinha já assegurada a sua reputação em Florença. Estes dois gigantes nunca gostaram um do outro e Leonardo não fazia segredo do fato de considerar a escultura inferior à pintura, mas a fama de Michelangelo era um fator de atrito.


Novamente, Leonardo trabalhou como engenheiro; drenando pântanos, desenhando mapas e projetando um sistema de canais. Em Urbino, conheceu Nicolò Machiavelli, e este encontro levaria a uma íntima associação e a sua mais importante encomenda. Enquanto isso, produzia magníficos desenhos a pastel vermelho de Cesare Borgia.

Em 1503, entrou nos seus três anos de maior produção como pintor. Seu quadro mais famoso, Monalisa, com seu sorriso enigmático, pode ter sido pintado nesta época. Grande parte dos trabalhos de Leonardo em Florença, feitos no período de 1503 e 1507, se perdeu, inclusive Leda. Achava a mecânica da pintura uma coisa entediante e preferiu concentrar suas habilidades imaginativas no desenho e no planejamento de suas composições.

Como resultado da sua florescente associação com Machiavelli, Leonardo recebeu uma encomenda para pintar um afresco na Sala del Gran Consiglio do Palazzo Vecchio. Começou trabalhar no cartão para o afresco - a Batalha de Anghiari - em outubro de 1503, mas parece que o progresso foi lento. Leonardo terminou seu cartão no final de 1504 e começou a pintar usando uma técnica incomum e possivelmente incáustica. A tinta secou de forma desigual e a pintura não deu certo. O aresco ficou inacabado mas, depois, foi feita uma moldura especial para a parte terminada e há quem a considere a melhor coisa a se ver numa visita a Florença . Posteriormente foi repintada por Vasari.

Durante o ano de 1507, Leonardo trabalhou para o Rei da França, embora seu mecenas imediato fosse Charles d'Amboise , lord de Chaumant e governador de Milão. De muitas formas, d'Amboise reinstalou as glórias da corte dos Sforza. Leonardo estava no seu elemento, trabalhando como pintor, engenheiro e conselheiro artístico em geral. D'Amboise morreu em 1511, mas Leonardo permaneceu em Milão até 24 de setembro de 1513. Depois foi para Roma, levado, como tantos, por Giovani de Medici que havia se tornado recentemente Papa Leão X.

Leonardo se instalou no Belvedere do Vaticano, mas a agitação provocada pelos principais artistas do país e suas comitivas, vivendo todos juntos, não lhe agradava. a incontestável posição de Michelangelo em Roma, resultante do seu trabalho na Capela Sistina, também lhe era intragável. Talvez a fascinação obsessiva de Leonardo pelo poder da água e os seus diversos esboços para o Dilúvio reflitam uma turbulência mental e espiritual.

O último quadro pintado por Leonardo que sobreviveu é, quase certamente, São João e deve ter sido feito em 1514-1515. Em março de 1516, Leonardo aceitou o convite de Francisco I para morar na França e ganhou uma propriedade rural perto de Cloux. Em 10 de outubro de 1517, recebeu a visita do Cardeal Luís

de Aragão, cujo secretário escreveu um relatório do encontro. Ele menciona três quadros, dois que podemos identificar como sendo Virgem e o Menino com Sant'Ana e São João, o terceiro é um retrato de uma dama florentina. Ele também afirma que Leonardo estava sofrendo de um tipo de paralisia na mão direita. Leonardo era canhoto, mas esta observação pode ter, na verdade, se referido à sua mão "de trabalho", significando a esquerda. Observando-se os manuscritos, fica óbvio que esta paralisia não impediu Leonardo de usar os dedos, porque sua letra estava clara e firme como sempre. Alguns desenhos, entretanto, mostram uma falta de firmeza e precisão que sugerem que o problema possa ter afetado o movimento do braço.

Em 2 de maio de 1519, Leonardo morreu em Cloux. Deixou os desenhos e manuscritos para o amigo fiel Francesco Melzi, enquanto viveu, Melzi guardou as obras com todo carinho, mas cometeu a insensatez de não incluir no seu testamento nenhuma cláusula que garantisse a continuidade deste cuidado. O filho, Orazio, que não tinha o mínimo interesse por artes ou ciências, deixou que esta inestimável coleção se deteriorasse, se perdesse, fosse roubada ou vandalizada de uma maneira que só se pode descrever como criminosa.

2.8.06

Caravaggio

"Não sou um pintor valentão,como me chamam,mas sim um pintor valente, isto é: que sabe pintar bem e imitar bem as coisas naturais."Assim Caravaggio se manifesta perante o tribunal que julga a primeira acusação, entre muitas, de perturbar a ordem pública. Jamais parou de crescer seu rol de vítimas com ferimentos leves ou graves, nos duelos em que se envolvia. Os amigos influentes, que intercediam para libertá-lo do cárcere, compunham uma lista bem menor. Com todas as promessas e traições de sua índole turbulenta, Caravaggio os fazia e desfazia com a mesma facilidade: num instante de brilho, num aparte fogoso, numa agressão intempestiva.

Eram palavras sacrílegas na Roma de seu tempo, para a qual não existiam nem a linha reta nem a cor em estado puro. A cidade o atraíra pelos grandes mecenas, pelo fausto da corte papal, pelo passado artístico. Mas agora Caravaggio cuspia nas estátuas clássicas e declarava nada ter a aprender com elas. Não lhe interessava mais a Roma sepultada pelos séculos, que o Renascimento tentou ressuscitar com o mito do homem heróico. Preferia a humanidade vulgar mas atual das feiras e tavernas: vendedores de frutas, músicos ambulantes, ciganos e prostitutas.

Ao tomar essa humanidade como modelo, aproxima-se mais de Leonardo da Vinci, para quem a pintura era uma forma de especular a natureza, do que a Michelangelo ou Rafael, cultores de uma arte épica e monumental. "Inventor" da natureza-morta, pelo menos na Itália, Caravagio formula um naturalismo diametralmente oposto ao estilo maneirista dos fins do século XVI. Introduz um tratamento revolucionário da luz, com prisma que decompõe e geometriza os componentes de um quadro, lição aproveitada mais tarde por um Rembrandt ou um Vermeer, e levada às últimas conseqüências pelo cubismo de Paul Cézanne. Passa, portanto, breve mas fulgurante pelos céus da pintura, como clarão que tudo ilumina antes de extinguir-se.
Na pia batismal, ele recebe o nome ilustre de Michelangelo, da família Merisi, residente na paróquia de San Giorgio, junto ao Paço Bianco di Caravaggio. Era uma pequena aldeia lombarda, cujo nome depois adotou. O pai tinha a profissão de maestro di casa - equivalente a "mestre obras" -, e ficou contente quando inscreveu o menino de onze anos no atelier de Simone Peterzano. Era a melhor maneira de livrar-se das traquinadas de quem não queria ajudar nas construções e constantemente fugia da escola para brigar na rua ou gazetear no campo.
Parece que ao entregá-lo a Peterzano, pintor modesto que se intitulava "discípulo de Ticiano", a família se desinteressa do rapaz. Nada se sabe a seu respeito até 1588 ou 1589, quando Caravaggio, aos quinze ou dezesseis anos, foge para Roma. O primeiro período na capital é duríssimo. Boêmio e desordeiro, tem dificuldade em adaptar-se à mediocridade dos pintores oficiais, ávidos de encontrar favores junto aos poderosos. O adolescente de cabelos ruivos passa de um atelier a outro, de um protetor a outro. Um destes, Monsenhor Pucci, lhe dá alojamento e uma dieta exlusiva de verduras. Recebe em troca alguns quadros e o apelido de "Monsenhor Salada".

Um ataque de malária leva o jovem ao hospital. Em poucas semanas, ainda debilitado pela doença, ele tem que procurar novos empregos. Oferece-se a contragosto ao Cavaliere dá Arpino, apreciador da pintura que já detesta: grandiloqüente, alambicada, de temas mitológicos tratados com ênfase teatral e linhas rebuscadas, como nos quadros de Carracci. A ruptura é quase imediata: proibido de pintar figuras, Caravaggio abandona o míope mecenas e freqüenta novamente a gentalha que vegeta à sombra de magníficos palácios e barrocas igrejas.

Após uma seqüência de rusgas, o primeiro processo por difamação. Frente ao juiz, Caravaggio se defende com arrogância. E um outro escândalo vem somar-se a este. O deus do vinho e das orgias - Baco para os romanos, Dioniso ra os gregos - é pintado com ar de travesti ou de gueixa japonesa, o corpo molemente inclinado, a oferecer uma taça e seus encantos de hermafrodita. É o conflito aberto e radical com os cânones artísticos da época, e também a divisão inconciliável entre admiradores e inimigos.

O Repouso no Egito desencadeia essa tempestade que não se amainará enquanto o pintor viver. Encomendada pelo Cardeal Francesco Maria Del Monte, é uma interpretação extremamente livre do conhecido tema sacro.

Sem apelar a um realismo excessivo, poetizando sua visão do homem e da natureza, Caravaggio faz uma pequena concessão ao gosto clássico: coloca um jovem semidespido ornado de asas que lhe conferem o aspecto de anjo musicista. São José lhe ergue a partitura, enquanto a Virgem - tão diferente das Virgens de Rafael - embala o Menino Jesus num gesto trivial. A luz que jorra sobre as faces e sobre os panos já antecipa a descoberta de Cézanne: a cor de um objeto determinada pela fusão da cor que lhe é própria com o raio de luz que nele incide. Porém Caravaggio tem da luz não só um conceito colorista, herdado dos venezianos de que era discípulo seu primeiro mestre em Milão, como também um conceito nitidamente plástico. Suas figuras destacam-se pelo ritmo dos gestos, pelo relevo quase físico das formas. Os elementos acessórios do quadro - flores, regato, mochila, folhas - são reproduzidos com a minúcia reveladora de um amor panteísta a cada ente da natureza.

Em Jovem Mordido por um Lagarto, a mesma atenta observação dos reflexos da luz sobre a água contida num vaso de flores casa-se a uma precoce e realista caracterização pessoal do personagem, que externa o espanto, a dor, o arrebatamento que o próprio pintor conhece diariamente.

Igualmente, a Santa Catarina de Alexandria mostra sua independência em relação à representação católica tradicional. Os personagens sacros vivem e agem num plano humano, não em estado hierático. Sem mobilizar céus ou nuvens, arcanjos ou santos, o pintor realiza uma severa síntese: o fundo passa a ser quase uniformemente escuro, e toda atenção se concentra na figura, incontestavelmente santa, mas de uma santidade conquistada a partir do caráter humano.

Desde logo, essa teoria e essa prática tomam Caravaggio o primeiro "pintor maldito" da era moderna, aquele que não falava mais o idioma pictórico seu contemporâneo, mas a linguagem futura da arte. Pelas mãos do amigo e protetor Del Monte, freqüenta ambientes cultos e refinados. Mas é capaz de abandonar uma recepção aristocrática para confraternizar com a pequena burguesia ou a ralé que se reúne nas 1 022 tavernas romanas, comendo bem e barato, fumando e discutindo ruidosamente até alta madrugada. Liga-se por amizade ao criador do Marinismo, o poeta Marino, do qual diverge em estilo e em gosto. Mas não reconhece regras invioláveis, e testemunha toda a violência de seu tempo: as lutas religiosas da Contra-Reforma, as execuções públicas de parricidas como Beatrice Cenci, decapitada, ou de heréticos como Giordano Bruno, queimado vivo.

É uma violência que também está em seu sangue e lhe arma ciladas arriscadas. Torna-se conhecido, em Roma inteira, pelas roupas extravagantes. Usa os primeiros chapéus de feltro com abas largas. Exibe uma espada na cintura e um cachorro no colo. É constantemente chamado à polícia e encarcerado por causa de rixas sangrentas.

Guiado pela veia popular, infunde a seus temas um ambiente ou uma caracterização humana tipicamente plebéia, combinando o sagrado e o profano. Sem o nu habitual nessas composições, sem atavios elegantes, seu Narciso volta a ser o adolescente da tradição popular helênica. E o monumental afresco Vocação de São Mateus , que pinta na Igreja de São Luís dos Franceses, na barroca e imensa Praça do Povo, pode ser comparada aos de Piero della Francesca em Arezzo ou aos de Michelangelo no Vaticano. Como Deus animando Adão na obra de Michelangelo para a Capela Sistina, Jesus aponta para o velho e barbudo Mateus, ordenando que O siga. E tudo se passa num botequim, em meio a um prosaico jogo de cartas: estupefação geral perante essa heresia, como se os apóstolos não fossem buscados nos refúgios de sua humílima condição social. Há uma luz que se esbate sobre as fisionomias para modelá-las corporeamente e envolvê-las numa aura imaterial. Há uma singular variedade de expressões: a dúvida de Mateus quanto ao endereço do chamado, a expectativa dos jovens à direita, a indiferença do outro à esquerda, absorto no jogo. Há uma serenidade levemente desfeita pelo apelo da mão.

Já o Martírio de São Mateus se caracteriza pelo dinamismo. A figura do carrasco, que brutalmente arrebata o ancião adormecido para assassiná-lo, é como eixo de uma roda humana, na qual se refletem as mais diferentes atitudes diante da morte: desde a impassibilidade do jovem ricamente vestido, até o grito de horror do menino que foge, e o socorro sobrenatural trazido pelo anjo. Mas a carnalidade palpitante dos nus, ao lado da originalidade da concepção, despertou a reprovação de muitos.

Em 1601, depois de mais uma reconciliação com seus ofensores, Caravaggio parece tranqüilo. Não se irrita quando uma obra para a Igreja de Santa Maria del Popolo é recusada, juntamente com outra, que reproduz o martírio de São Pedro, crucificado de cabeça para baixo. A primeira das recusadas, a Conversão de São Paulo, representa outra revolução na iconografia religiosa. "Onde está o santo?" - indagavam os maus entendedores - Aqui só se vê um cavalo!" Escapava-lhes tanto a simbologia do momento - quando São Paulo, o homem, caiu ao chão ofuscado pela visão de Jesus, na estrada de Damasco - como também a expressiva beleza transcendente que brota do vago foco de luz vindo de cima, a banhar o ventre do cavalo e inundar de claridade o rosto do santo. Colocando o centro do afresco no chão, Caravaggio documenta a insignificância do homem perante a divindade.

A Crucifixão de São Pedro é toda em diagonais agudas que se entrechocam, simbolizando o conflito da brutalidade com a pureza. A colocação destacada, em primeiro plano, do traseiro de um dos algozes mereceu a acusação de vulgaridade. Na Deposição de Cristo, acentuam-se os elementos popularescos. A figura de Maria Cléofas, na extrema direita, que abre os braços num gesto incomum em Caravaggio, é considerada por críticos autorizados como um adendo posterior e anônimo. Tal posição é confirmada pela famosa cópia desse quadro feita por Rubens e que exclui essa figura. Embora relativamente inferior, a tela apresenta notável realismo nas pernas dos santos atendentes, com as veias saltadas pelo esforço, e no rosto envelhecido da Virgem. "Como ela devia ser exatamente", dizia o pintor quando, mais afável, se dignava a explicar um pouco sua concepção da divindade que se encarna temporariamente como criatura mortal, assim vulnerável a todos os malefícios da carne.

São Jerônimo traduz a austeridade do personagem nas próprias cores e linhas: o dinamismo se limita ao braço estendido do eremita; o cromatismo se reduz ao vermelho de seu manto e a dois tons de marrom e amarelo-pálido, com toques de branco; a caveira é uma advertência moral.
Davi com a Cabeça de Golias combina a violência com um de seus temas permanentes: a beleza equívoca do adolescente. A tradição afirma ser a cabeça decepada do gigante um auto-retrato de Caravaggio, expressivo do desalento em que viveu seus últimos anos, atormenntado pela perseguição inclemente dos adversários.

A Ceia em Emaús foi feita em seguida à representação do mesmo tema com o Cristo totalmente imberbe. Os que se escandalizaram ignoravam a tradição bizantina que mostrava Cristo, de preferência adolescente, como que simbolizando fisicamente a eterna juventude e validez da Sua mensagem. Mas Caravaggio não dava importância à ira dos que consideravam seus quadros "heréticos": ele já não havia pintado uma morte da Virgem Maria que a mostrava com o ventre inchado, os pés para fora do leito, como uma mulher da plebe que sucumbisse de inanição ou de parto, numa atmosfera carregada de miséria?

Esta ceia - sem a pompa de um Tiepolo ou um Veronese - apresenta os santos como figuras do povo, campônios rudes mas de expressão firme. A luz que inunda a cena antecipa de um.século o chiaroscuro de Rembrandt ou o tratamento requintado de Vermeer.

A trajetória de Caravaggio aproxima-se do fim. Em Roma, corroído de dívidas, recusa a oferta do Príncipe Doria Pamphili para decorar uma parte de seu palácio, hoje sede da embaixada brasileira na Itália. Insiste em pintar "quadros verdadeiros", certo de encontrar compradores e assim melhorar de situação. É dessa fase a Virgem do Rosário, também denunciada por "vulgaridade". Peca apenas, porém, pelo excesso maciço e confuso de personagens, enquanto Virgem de Loreto caracteriza-se pela sobriedade clássica, pelo realismo das poucas figuras retratadas, e pela ausência de qualquer sentimentalismo no orgulho da mãe que apresenta o filho à veneração de dois humildes peregrinos. Na Adoração dos Pastores, Caravaggio atinge talvez o ponto supremo de uma pintura sacra ortodoxa que constitui exceção dentro de sua tendência sempre inovadora.

Da adoração dos Reis Magos, tradicional na pintura toscana ou norte-européia, a tônica social se desloca para os pastores, num quadro simples e comovente, onde a intensificação dos tons escuros prenuncia o desenlace fatal de uma vida perigosa.

No turbilhão que o agita, Caravaggio mata um certo nobre Tommasoni, durante um jogo de pallacorda, antepassado do tênis. É o último dia do mês de maio de 1606.

Ferido ele próprio, e protegido pela família dos Colonna, escapa para Nápoles, onde muitos admiradores o acolhem. Ali pinta As Sete Obras de Misericórdia, ilustração dos atos de bondade enumerados no Evangelho (dar de beber aos sedentos, consolar os aflitos, etc.), que influi no desenvolvimento da pintura napolitana, e bem reflete o momento psicológico do autor: adensam-se as sombras, acentua-se o clima dramático.

Enquanto em Roma seu perdão é pleiteado, ele se dirige à ilha de Malta, onde recebe a Cruz de Malta outorgada pelo grão-mestre da Ordem, Alof de Vignacourt, de quem executa dois retratos, além de uma Degolação de São João Batista. Mas, fora de controle, revida a ofensa de um nobre maltês e é encarcerado pelo severo regime militar ali vigente. Ajudado por amigos - crê-se que entre eles o próprio Vignacourt -, galga os muros da prisão e embarca à noite para a Sicília. Pressente a vingança no seu encalço. Muda de cidade seguidamente: de Siracusa a Messina, daí a Palermo, desta a Nápoles, no outono de 1609.

É melancólica sua última obra, dilacerada pelo sofrimento e pela inquietação: A Flagelação. Apenas o Cristo é plenamente iluminado, e irradia parte do brilho em tomo dos algozes, de corpos retesados num bailado grotesco e cruel.

Pela segunda vez, Caravaggio fora abrigado em Nápoles por pessoas influentes, algumas ligadas à própria Ordem de Malta. Mas era tarde: os sicários do cavaleiro maltês ultrajado descobrem seu esconderijo. Perto de uma taverna, ferem-no a espada repetidas vezes. Sua robustez prevalece sobre os graves ferimentos. Recolhido e medicado, parece convalescer. A notícia de que o papa está prestes a conceder-lhe perdão e permitir-lhe o regresso a Roma anima-o a deixar Nápoles por via marítima. Todavia, não totalmente recuperado, vertendo sangue, minado pela malária, ele morre numa praia deserta, no dia 18 de julho de 1610.

Dias depois, junto com a barca onde tinha abandonado seus haveres, chega a Roma apenas um pregão lutuoso:

"Tem-se notícia do falecimento de Michelangelo Caravaggio, pintor famoso como colorista e retratista baseado na natureza..."

Alheio a qualquer maneirismo, mas sensível à interpretação poética e transfiguradora do mundo real, Michelangelo Merisi da Caravaggio foi um artista despojado numa época marcada pelo excesso ornamental barroco. Contra a corrente saudosista de seu tempo, plasmou uma arte arraigadamente humana, realista e original. Seu critério quase "funcional" de pintura, à moderna, teve o condão de enfurecer muitos donos da cultura e árbitros do gosto da época. A esses, Caravaggio sempre deu de ombros: pintava para todos os séculos, não para o seu.