6.11.06

Cândido Portinari








A amarga realidade

Tarde da noite, o garoto de apenas quinze anos entra na pensão onde trabalha em troca de uns poucos níqueis e onde, por consideração, o deixam dormir em algum canto, com a condição de que não perturbe o sossego dos hóspedes. Vinha de retorno de suas aulas de pintura no Liceu de Artes e Ofícios e tudo o que queria era algo com que matar a fome.

De dentro de seu alforje, tira um pouco da gelatina que, na escola, é distribuída aos alunos para mesclar às tintas, dando-lhes a consistência necessária. Do que sobrou, o menino trouxe um pouco para casa, colocou ao fogo e, juntando ao pão duro e amanhecido, fez sua última refeição.

Havendo iludido seu estômago com essa estranha mistura, foi a um dos banheiros da casa, colocou no chão algumas tábuas, jogou sobre elas um colchão de crina e deitou-se.

Estava encerrado mais um dia de luta. No dia seguinte, a rotina seria a mesma. Ao deixar a família no distante interior paulista, para vir sozinho ao Rio de Janeiro estudar pintura, Candinho nem por sombra imaginava as agruras por que teria de passar.

Mas um dia tudo deveria melhorar, tinha certeza disso. E nessa confiança adormeceu, refazendo as forças para a jornada de um novo dia e, à noite, para o reencontro com pincéis, telas e sonhos.

Pintando estrelas,
construiu um sonho

Candido Portinari nasceu em Brodowski, próximo a Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, em 29 de dezembro de 1903. Seus pais tinham vindo do nordeste da Itália para «fazer a América» mas, tarde demais, descobriram que a realidade do imigrante não era aquele devaneio criado pela propaganda dos contratadores de imigração.

Trabalhando de sol-a-sol, com salários minguados e uma forte concorrência, o desiludido imigrante podia agradecer aos céus por conseguir, mal e mal, dar abrigo e alimentação à numerosa família. Eram quinze ao todo: O casal e mais treze filhos que, na idade em que deveriam estar brincando, já participavam com seu esforço no sustento da casa.

Não, não era o que hoje se costuma rotular de «exploração ao trabalho infantil». Era, sim, a única opção de sobrevivência, a linha crítica entre a vida e a morte. Ou trabalhavam todos, ou estavam todos condenados à morte, ou pela fome, ou pela tuberculose. Trabalhar, pois, era a garantia de vida, ainda que na miséria.

Aos nove anos, Candinho já havia conseguido seu primeiro emprego como ajudante junto a artistas italianos que restauravam a pintura na igreja em Brodowski. Explicando-lhe as técnicas elementares, os pintores o ensinaram a refazer as estrelas, que eram a parte mais simples do conjunto.

As estrelas iluminaram seu caminho, construiram um sonho bonito e inspirador. Havia de ser pintor, também. E como lhe dissessem que a rota da fama e da prosperidade passa obrigatoriamente pelo Rio de Janeiro, durante três anos juntou dinheiro, o suficiente para chegar até a capital federal, onde o encontramos na maior penúria, mas confiante do futuro que o destino lhe reservara.

Entre pedras e rosas

Em 1918, Portinari estudava pintura no Liceu de Artes e Ofícios. Em 1921, finalmente, conseguiu ingressar na Escola Nacional de Belas-Artes, para um curso avançado.

Se era carente de recursos materiais, não faltaram a Portinari grandes mestres que iriam orientar sua vida, dando a ela sentido e direção: estudou desenho com Lucílio de Albuquerque (marido de Georgina); aprendeu pintura com Rodolfo Amoedo e João Batista da Costa. Viveu o ambiente da Academia, convivendo com futuros artistas, respirando arte e abrindo, ainda que com extrema dificuldade, a larga estrada que o conduziria ao futuro.

Em 1920, vendeu sua primeira tela, Baile na Roça; em 1922, expôs no Salão Nacional de Belas-Artes, sendo completamente ignorado. Mas em 1923, voltando à exposição com outro quadro, recebeu a medalha de bronze e um pequeno prêmio em dinheiro, apenas como estímulo.

Nos Salões seguintes conseguiu primeiro a medalha de prata e depois a grande medalha de prata. E, o que é melhor, passou a ser notado pelos críticos, recebendo de Flexa Ribeiro palavras de estímulo:

«De seu sentimento, muito devemos esperar: alguma coisa da alma florentina tenta renascer nesse adolescente que é, desde já, um espiritualista.»

A viagem, o casamento,
a nova vida

O ano de 1928 selou sua sorte, quando ganhou o ambicionado prêmio de viagem, que lhe permitiu visitar França, Itália, Inglaterra e Espanha, voltando para o Brasil ao fim de dois anos.

O resultado de sua viagem pareceria, a quem o visse, decepcionante. Em dois anos, pintara apenas três pequenas naturezas-mortas. Só isso e nada mais.

Todavia, o ano de 1930, marcou uma virada em sua vida. Primeiro, casou-se com Maria Vitória Martinelli, uma uruguaia que viria ser, para todo o sempre, o esteio de sua carreira. Segundo, com a bagagem cultural adquirida durante a viagem, passou a pintar desenfreadamente, por vezes até um quadro a cada dia.

Aos poucos, vai se desfazendo da tutela da Academia, sua arte ganha fluidez e liberdade e, em 1931, já se faz notado no Salão Revolucionário, onde sua obra, eclética e extensa, é bem recebida tanto pelos acadêmicos como pelos precursores da arte moderna.

Na Escola Nacional de Belas-Artes, assumia Lúcio Costa, com o propósito de abrir os horizontes daquela instituição. O Brasil vivia o encantamento da 2ª República, iniciada em 1930 e o governo revolucionário, precisando construir edifícios para acomodar a nova estrutura do poder, passou a procurar artistas com idéias avançadas no tempo.

Durante todo o período do Estado Novo, depois de uma curta e frustrada experiência como professor de pintura, Portinari vai conseguindo encomendas oficiais uma após outra: no Ministério da Educação, no pavilhão brasileiro da Feira Mundial em Nova York, na biblioteca do Congresso em Washington etc., etc. Por fim, a convite do prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, trabalha no controvertido projeto da Igreja de São Francisco, no complexo arquitetônico de Pampulha.

Portinari confiou no futuro, trabalhou arduamente, e o futuro virou presente.

Esposa, companheira
e marchande

Se bem sabia pintar, Portinari não tinha jeito algum para o comércio de seu trabalho e em breve sua esposa Maria assumiu os negócios para evitar que o pintor doasse seus quadros ou os vendesse por valores simbólicos. E ela o fazia com determinação, para marchand nenhum pôr defeito, conforme episódio contado por Deocélia Viana, viuva do radionovelista Oduvaldo Viana:

«Oduvaldo foi ao Rio com o intuito de adquirir um quadro de Candido Portinari, seu velho amigo. Candido tinha um nome adequado. Aquele seu jeito provinciano, ar ingênuo e de uma candura enorme. Ficou feliz de ver Oduvaldo. (...)

«Meu marido explicou o que queria e Cândido levou-o a ver seus quadros. Oduvaldo escolheu um lindíssimo, As Lavadeiras. (...) Veio a Maria para fechar o negócio. (...) E ficou combinado que pediriam ao Modesto de Sousa, velho e grande ator, que apanhasse o quadro e o mandasse para São Paulo. (...)

«Oduvaldo voltou e, uns quinze dias depois, Modesto de Sousa foi buscar o quadro. "E o dinheiro?," perguntou Maria. "Oduvaldo ficou de remeter," respondeu ele. "Bom, depois que o dinheiro chegar, você leva o quadro."

«Oduvaldo se queimou, ficou furioso, não mandou o dinheiro, porque era um desaforo a Maria duvidar dele e, por uma bobagem, ficamos sem o quadro do grande Portinari.»

Vida, paixão e morte

Seu primeiro encanto foi o nascimento do único filho, João Cândido, em 1939. O intenso trabalho, que incluía três painéis para o pavilhão brasileiro na feira internacional em Nova York, não o impediam de viver a vida familiar.

Através dos anos, entre telas, murais, pincéis e tintas, havia tempo de sobra para manter-se ligado à família, mulher e filho, com um vínculo indissolúvel, tão indissolúvel como sua paixão pela arte.

Mas em 1954, começa a sentir o efeito do contato diuturno com as tintas. O médico lhe diz que está com uma dose anormal de chumbo no organismo e, para evitar uma contaminação maior, deve abandonar por completo a pintura a óleo ou similares.

Portinari tenta partir para outras técnicas, usando até lápis de cor e caneta a tinteiro, numa mistura de desenho com pintura, mas sente-se reprimido, impedido de liberar por inteiro suas emoções e sua capacidade artística

Em 1960, um novo ser vem povoar sua vida: a pequena Denise, filha de João Candido, que ele passa a cantar em prosa em verso. Delicia-se com seus primeiros passos suas primeiras palavras, transforma-a em modelo de suas novas criações.

Contrariando determinações médicas, volta a usar o óleo para retratar sua neta, para a qual pinta pelo menos um quadro por mês.

O médico estava certo. O retornou às tintas aumentou o grau de contaminação do organismo, debilitando de vez sua saúde. E Candido Portinari vem a falecer em 6 de fevereiro de 1962, aos 58 anos de idade, no auge da fama, consagrado, no Brasil e no mundo, como um dos maiores pintores do Século 20.

Fonte: www.pitoresco.com

15.10.06

Johannes Vermeer



De Johannes Veermer, pintor holandês do século XVII, pouco se sabe. Quem pretender estabelecer uma cronologia da sua vida, fica-se por algumas datas extraídas de certidões de nascimento e morte, registos de casamento ou de venda e compra de bens. Entre 1632 e 1675, nasceu, viveu e faleceu na cidade holandesa de Delft,sem deixar grande rasto,a não ser 35 obras-primas da pintura (a que parece vir juntar-se agora uma mais, descoberta e reconhecida há pouco, e que vai a leilão por estes dias) e uma catrefa de filhos (quando Vermeer morreu deixou onze em testamento e vários registros a comprovar o enterro de alguns mais, mortos pouco depois de nascerem).
Uma existência tão parca em mediatismo, se diria hoje, não transformou Vermeer num acontecimento, de um dia para o outro. Demorou séculos o seu reconhecimento. Se em vida era tido como “mestre de pintura” e por várias vezes foi eleito presidente da “Guild” numa cidade de tão grandes tradições no ofício, isso deveu-se mais ao abandono da concorrência, que viajava até à mais próspera e bem dotada Amsterdã, deixando Delft ao cuidado deste pintor de que se conhecem apenas três dezenas e meia de obras, a maioria das quais pintadas no seu atelier, com o mesmo cenário por fundo e a mesma luz a envolver as personagens.
No entanto, por essa altura, a Holanda e a vizinha Flandres eram pródigas em “mestres de pintura” e criaram uma escola onde abundavam nomes consagrados: Rembrandt e Frans Hals desde logo, mas também Van Goyen, Emmanuel de Wliete, Hendrick Averkamp,Van der Helst, Jacob Van Loo, Frans Van Meris,Willem Kalf, Nicholas Maer, Jacob Van Ruisdael, Pieter Snyders, Gabriel Van de Velde, Philips Wonwerman, Peter de Hooch, Adrien Van Ostade, Gerrit Das e etc. Pela Europa, era o tempo de Rubens, Poussin, Van Dyck, Ribera, Murillo e Velazquez. Na música, dominavam Monteverdi, Lully, Scarlatti, Couperin ou Vivaldi,enquanto nas letras Corneille,Racine e Molière davam cartas em França,ao lado de Descartes, Pascal, Rousseau, Milton, Leibniz. Nem tudo eram rosas (longe disso!): Galileu Galilei era julgado por heresia na Inquisição.Tempos conturbados,com o Cardeal Richelieu em França,Luís XIII e Luís XIV,Versailles e a guerra com a Espanha;Portugal submetido aos vizinhos Filipes, e depois de novo independente; Carlos I em Inglaterra a tentar dominar o Parlamento e a ser escorraçado por Cromwell; o Papa Inocente X; Pedro, o Grande, na Rússia; a discutida Paz de Westfália a pôr termo à Guerra dos 30 anos... Uma Europa em ebulição, atravessada por conflitos que mostravam uma burguesia em ascensão social e política, alicerçada no seu cada vez mais visível poder econômico. E a reação aristocrata a retorquir e a procurar manter ou recuperar o poder absoluto.
A Holanda livra-se do domínio espanhol em 1603 e instaura uma monarquia de características burguesas. A Flandres mantém-se sob o jugo da Coroa Espanhola. Mas o poder econômico nas Províncias Unidas dos Países Baixos está cada vez mais nas mãos de negociantes e mercadores.Tornam-se mesmo no principal centro econômico e financeiro da Europa em meados de seiscentos.Um poder econômico que Vermeer sentiu a seu lado, sob a forma de mecenas. Van Ruijven era o seu protetor, o financeiro que encomendava quadros, uns a seguir aos outros, e com o pagamento dos quais o pintor ia vivendo com a numerosa família, sempre em desequilíbrio econômico: mais as dívidas que as receitas. Um mecenato que impunha regras e ditava os motivos, recrutava modelos e deles se servia. Por essa altura, ser pintor não tinha ainda o estatuto artístico de um escritor ou músico. Assemelhava-se mais a um artesão do que a um artista.
Se os episódios da vida de Vermeer não são muito conhecidos, a lacuna não impede que a investigação de uns e a imaginação de outros procure recriar a história para se aproximar cada vez mais da essência da arte deste pintor de eleição,que fazia da cor e da luz motivos de identificação pessoal inequívoca, mesmo no quadro de uma escola que se caracterizou essencialmente por isso. A “escola da Flandres”,com Rembrandt a dominar, mas tendo em Vermeer uma referência de idêntico fulgor, fazia da luz e da cor duas das suas diferenças fundamentais, mas comportava outras especificidades que a tornavam uma das preferidas por colecionadores e comerciantes de arte da época (e de épocas posteriores, até à atualidade): os motivos que serviam de inspiração aos pintores eram de raiz doméstica, iam do retrato individual ao grupo humano, passavam por uma dignificação das profissões, logo da burguesia ascendente (muitas das telas de Vermeer são isso mesmo, o geógrafo, o astrônomo, o oficial, o professor de música, etc.) e culminavam no registro “artístico” do dia a dia (mulher a escrever carta, com garrafa de água, com o jarro do leite, com o copo de vinho, mulher escrevendo, com chapéu vermelho ou brinco de pérola, mulher a costurar, com flauta, com guitarra, etc.). Tudo burgueses bem comportados em harmonia de poses e situações que os “distinguiam” obviamente do “povo miúdo”e assim cimentavam uma reputação.
Sendo a Holanda uma região predominantemente protestante, raras eram as representações de cenas religiosas (apenas os pintores católicos as escolhiam, caso de Vermeer, que se converteu ao catolicismo quando casou com a mulher, Catharina). Mas sendo também a época fértil em guerras religiosas, a verdade é que a Flandres parece ter sido das regiões da Europa onde a tolerância e a convivência entre vários credos era mais palpável.A sua pintura é também reflexo dessa aparente calma, sublinhado o ritualismo do quotidiano, em lugar de registrar cenas bíblicas ou religiosas.
Mas há mais a considerar na arte flamenga: o uso da perspectiva que adquire com os “flamengos” uma perfeição raras vezes atingida. Neste caso, Vermeer é um mestre trabalhando num atelier onde pinta a quase totalidade das suas obras, e que surge quase sempre enquadrado de um mesmo ângulo (tendo as janelas à sua esquerda,donde nasce a luz que inunda o motivo, ou apenas ilumina um rosto, um excerto, um fragmento). Há quem diga (e há estudos científicos efetuados sobre esta hipótese, tentando comprova-la) que Vermeer pintava tendo como base uma câmara escura (câmara escura que recebia a imagem por uma lente, e a reproduzia, invertida, do lado contrário, uma das bases da fotografia e do cinema). O esboço do desenho era assim conseguido com grande rigor, permitindo ao pintor avançar posteriormente com grande segurança no seu trabalho. Com câmara escura ou sem ela,a verdade é que a perspectiva não conhecia mistérios para Vermeer, e a possibilidade de profundidade de campo que ela permitia, tornava as suas obras ainda mais cobiçadas.
Mas é na forma como a luz e a cor nos são restituídas que os quadros de Vermeer se tornaram lendários. Há um azul Vermeer inconfundível, e há uma luz coada sem paralelo. Assim se atingiu o parapeito da lenda onde hoje se encontra a obra e a vida de Vermeer. Tudo isto para se chegar a “Moça com Brinco de Pérola”, inicialmente romance de Tracy Chevalier,depois filme de Peter Webber,a justificar atenção especial,depois de ter passado pelos “Óscares”, onde o português diretor de fotografia Eduardo Serra mereceu nomeação e só não a consagração porque “O Senhor dos Anéis” estava em noite de consagração.
Com base num quadro célebre que encerra um fascínio idêntico ao do sorriso de “Mona Lisa”,o tal retrato de “Moça com Brinco de Pérola”,Tracy Chevalier imagina uma história para explicar a concepção da obra. Nada mal pensada, aliás: uma jovem, cuja família se arruinara por doença do pai,vê-se constrangida a aceitar ir servir como criada para casa do pintor Vermeer.As suas funções serão tomar conta das inúmeras crianças, tratar da lide da casa, lavar,passar a ferro,ir ao mercado comprar peixe e carne (o que faz a preceito,não só não se deixa enganar como ainda fulmina de amores o filho do talhante) e ainda limpar o atelier do pintor. Aqui demonstra não só sensibilidade e delicadeza, como também uma paixão pela arte do patrão. Passará a limpar cuidadosamente os vidros das janelas (“será que limpar o pó que nelas se acumula não irá alterar a luz da sala?”, pergunta denotando especial perspicácia), a retirar o pó de cima dos móveis, sem mexer em nada, misturar as cores das tintas até atingir o cromatismo desejado, e um dia será mesmo o modelo escolhido para posar para a eternidade com o brinco de pérola da patroa pendendo de uma das suas orelhas. O quadro é uma obra de arte, mas também uma obra de amor e desejo, que o filme deixa na penumbra da incerteza (será que aquela cena de perfurar a orelha para colocar o brinco não prefigura uma outra penetração que fica subentendida? E o humedecer dos lábios? E os olhares intensos que se cruzam e se calam? E a corrida de Griet para os braços do namorado, entregando-se em desespero ao desejo que a abrasa?). Aliás, toda a relação da jovem Griet com Vermeer é particularmente bem dada desde início, estabelecendo uma indefinida atração mútua que vai desde o fato de Griet se deixar fascinar pelas pinturas que vê (algumas de cenas religiosas que atentam contra a sua religião protestante) até ao olhar excitado que lança sobre a porta entreaberta do misterioso atelier do mestre que ela já admirava e que lhe proíbem de transpor sem autorização. Aquela sala e aquela luz serão uma obsessão. Uma obsessão pelo proibido, uma obsessão amorosa também.
O filme consegue equilibrar-se entre a biografia histórica e romanceada, entre o retrato de uma época e o drama passional, sem nunca entrar em retórica escusada. Austero e límpido como um hábito protestante, discreto e pudico na forma como esboça uma atração fatal que paira como desejo ou ameaça (igualmente desejada!), mas nunca se expressa de forma concreta, consegue um trabalho fotográfico que capta todo o fulgor das tintas e da luz do tempo e do lugar (há um plano mágico, quando surge pela primeira vez o azul que Vermeer imortalizou e que a câmara de Eduardo Serra rasga no ecrã com o brilho de uma pedra preciosa).
Excelente documento sobre um pintor e sobre um período histórico,“Moça com Brinco de Pérola” é ainda uma curiosa aproximação do ato de criar em arte, sem recorrer a estereótipos freqüentes, procurando manter-se a um nível de exigência e intransigência estética indiscutível.Que as platéias de todo o mundo apreciam e não ignoram.Excelentes actores – Colin Firth (Johannes Vermeer), Scarlett Johansson (Griet), Tom Wilkinson (Van Ruijven), Judy Parfitt (Maria Thins), Cillian Murphy (Pieter), Essie Davis (Catharina), Joanna Scanlan (Tanneke), Alakina Mann (Cornelia) – recriam personagens que conservam o mistério das suas vidas intocável, mas admitem aproximações diversas que estimulam o espectador. Um belo filme.
Nota: Não sendo um filme que tenha como tema ou cenário um castelo, é todavia uma obra que testemunha de forma interessante a vida quotidiana numa cidade e numa época dominada pelo castelo.

Fonte: http://www.famafest.org

26.9.06

El Greco




Pintor maneirista de origem grega que viveu em Espanha em finais do século 16 e princípios do século 17.

Nasceu em Dito, Cândia [Eraklion], na ilha de Creta, em 1541;
morreu em Toledo, Espanha, a 7 de Abril de 1614.

Tendo nascido em Creta, então possessão da República de Veneza, e por isso cidadão veneziano, começou a sua instrução em Cândia, com João Gripiotis. Mais tarde, entre 1560 e 1566 instalou-se em Veneza, tendo provavelmente trabalhado no atelier de Ticiano, cuja técnica o influenciou. Em 1570 estava em Roma, vivendo no palácio do cardeal Alessandro Farnese. Foi admitido na Academia de São Lucas em 1572 com o nome de «Dominico Greco», como pintor em papel, tendo-se manifestado abertamente contra o Juízo Final de Miguel Ângelo, pintado na Capela Sistina. Tal posição valeu-lhe a antipatia do meio artístico de Roma, o que o terá levado a partir para Espanha, com a provável intenção de trabalhar nas obras do Escorial, mas passando primeiro por Veneza, segundo parece. Depois de uma curta estadia em Madrid a partir da Primavera de 1577, instalou-se em Toledo em 1578 onde viveu até à data da sua morte, com D. Jerónima de Las Cuevas, com quem nunca casou, mas de quem teve um filho que legitimou, parecendo que não poderia casar, já que a mencionou em vários documentos, assim como no seu testamento.

A vida de El Greco foi passada em Toledo, vivendo das encomendas das igrejas e mosteiros da cidade e da província, e dando-se com humanistas conhecidos, estudiosos e clérigos. É sabido que o pintor era dono de uma cultura humanista muito vasta, tendo a sua biblioteca livros de autores Gregos e Latinos, assim como obras em Italiano e espanhol - as Vidas de Plutarco, poesia de Petrarca, Orlando Furioso de Ariosto, tratados de arquitectura de vários autores, incluindo Palladio, e actas do Concílio de Trento.

A primeira encomenda que o pintor teve, logo que chegou a Toledo, foi um conjunto de pinturas para o altar-mor e dois altares laterais na igreja conventual de São Domingos o Velho existente na cidade. O próprio desenho dos altares foi feito por El Greco, no estilo do arquitecto veneziano Palladio. O quadro realizado para o altar-mor, a «Assunção da Virgem» marca um novo período na vida do artista. A influência de Miguel Ângelo faz-se sentir no desenho das figuras humanas, sendo a técnica - sobretudo o uso liberal da cor branca para salientar as figuras e os pormenores - claramente veneziana; mas a intensidade das cores e a manipulação dos contrastes é de El Greco.

A tendência do pintor para alongar a figura humana, aprendida em Miguel Ângelo, mas também em Tintoretto e Paolo Veronese, e em pintores maneiristas vai caracterizar toda a sua pintura.

A relação de El Greco com a corte de Filipe II foi muito breve e mal sucedida. Pintou dois quadros, a "Alegoria da Santa Liga" ("O Sonho de Filipe II" de 1578-79) e o "Martírio de S.Maurício" (1580-82). A última obra foi rejeitada pelo próprio rei, que encomendou outra para substituir a do pintor de Toledo.

Aquela que é considerada a sua obra prima é pintada após este fracasso, no relacionamento com a corte espanhola. "O Enterro do Conde de Orgaz" (1586-88, Igreja de São Tomé, Toledo) apresenta uma visão sobrenatural da Glória (o Céu) por cima de um impressionante conjunto de retratos que demonstram todos os aspectos da arte deste génio criador. El Greco distingue claramente o Céu e a Terra. Na parte de cima, o Céu é representado por nuvens de forma quase abstracta, e os santos são altos e com expressão fantasmagórica. Na parte de baixo, a escala e a proporção das figuras é normal. De acordo com a lenda, Santo Agostinho e Santo Estêvão aparecem miraculosamente para colocar o conde de Orgaz no túmulo, como prémio pela sua generosidade para com a Igreja. O jovem representado ao lado do corpo do conde é o filho do pintor, Jorge Manuel. Os homens, vestidos contemporaneamente, que estão presentes no funeral são membros proeminentes da sociedade toledana do século XVI. A técnica de apresentação da composição é integralmente maneirista, já que toda a acção se desenrola no primeiro plano.

De 1590 até à sua morte o número de obras pintadas é extraordinário. Sendo que algumas das suas encomendas mais importantes se realizam nos últimos 15 anos da sua vida. O que caracteriza este período da vida de El Greco é o alongamento extremo dos corpos das figuras pintadas, como na "Adoração dos Pastores" (Museu do Prado, Madrid) pintado entre 1612 e 1614, na "Visão de São João" ou na "Imaculada Conceição" pintada de 1607 a 1613 (Museu de Santa Cruz, Toledo).

Nas três paisagens que pintou, o pintor demonstrou a sua tendência mais característica de dramatizar mais do que descrever, e no seu único quadro que tem a mitologia por assunto, o "Laokoon" de 1610-14, mostrou ter pouco respeito pela tradição clássica.

Os seus retratos, se são menos numerosos do que as suas obras de carácter religioso, não deixam de ter a mesma qualidade. Tendo pintado personagens da Igreja, como "Frei Felix Hortensio Paravicino (1609) e o "Cardeal Don Fernando Niño de Guevara" (1600), assim como personalidades da sociedade de Toledo, como "Jeronimo de Cevallos" (1605-1610), ou o célebre "O Cavaleiro com a mão no peito" (Museu do Prado) de 1577 a 1584, e outros, todos são característicos dos meios simples com que o artista criou caracterizações memoráveis, que o colocam numa posição proeminente enquanto retratista, ao lado de Ticiano e de Rembrandt.

El Greco não deixou escola. Após a sua morte, alguns artistas, incluindo o seu filho, realizaram cópias dos seus trabalhos, mas de muito pouca qualidade. A sua arte era demasiado pessoal para poder sobreviver, até porque o novo estilo Barroco começava a impor-se com Caravaggio e Carracci.



11.9.06

Vincent Van Gogh


1851 - Teodoro van Gogh casa-se em maio com Ana Cordelia Carbentus (pai e mãe de Vincent)
1852 - Em 30 de março nasce o irmão mais velho de Vincent. Morre aos seis meses.
1853 - Nasce Vincent em 30 de março, no mesmo dia do irmão falecido, recebendo o mesmo nome .
1857 - Nasce Theodore van Gogh em 1º de maio.
1862 - primeiros desenhos que se conhecem de Vincent van Gogh.
1865 - Vincente entra na instituição de M. Provily em Zavenbergen.
1869 - Vincent entra como empregado na filial da casa Goupil em Haia.
1872 - Primeira carta de van Gogh a seu irmão Theo.
1873 - Theo, em 1º de janeiro, entra como empregado na filial de Bruxelas da casa Goupil. Vincent recebe uma antecipação em maio e vai para Londres. Em setembro, muda de pensão e vai viver na casa de Loyer.
1874 - Vincent é recusado por Úrsula Loyer em julho. Volta desperado para a Holanda. Em meados de julho volta a Londres com sua irmã Ana. Por intermédio de seu tio Cent, é enviado a Paris em outubro para que se distraia. Volta repentinamente a Londres, onde em vão tenta ver Úrsula.
1875 - Vincent é um péssimo empregado em Londres. Em maio é transferido para Paris. Vive em Montmartre e se entrega ao misticismo. Seu trabalho o angustia cada dia mais. Seus patrões se queixam amargamente dele. Em dezembro, sem avisar ninguém, vai para a Holanda. Os impressionistas neste período passam por imensa miséria.
1876 - Vincent retorna a Paris e seus patrões o despedem . Em abril abandona Paris e vai para Etten. Emprega-se como professor na escola anglicana do senho Stokes, em Ramsgate, onde chega no dia 16.Encarregado de recolher os pagamentos dos alunos, Vincent percorre o East End, cuja miséria o comove ( ver a obra NO UMBRAL DA ETERNIDADE ). Consolaos pobres. O senhor Stokes despede Vincent em julho, que vai trabalhar para o senhor Jones como ajudante de pregador.Vincent volta para a Holanda no natal .
1877 - Em janeiro, Vincent entra como empregado numa livraria de Dordrecht. Logo deixa este emprego e em 9 de maio chega a Amsterdam para estudar para pastor. Os impressionistas expõe pela terceira vez. (ver a obra O BARCO ESTÚDIO de Claude Monet )
1878 - Em julho, Vincent abandona seus estudos e vai para Amsterdam. Após uma rápida estadia em Etten, no outono entra numa escola evangelista de Bruxelas. Mas após 3 meses não é nomeado. Parte voluntariamente para Borinage . No fim do ano, O Comitê de evangelização, surpreendido por seu ânimo e sacrifício, retrata-se de sua decisão e lhe dá um cargo por 6 meses em Wasmes.
1879 - Vincent consome-se sem cuidar de sua saúde. Sua dedicação chama a atenção do Comitê, mas não renovam sua missão. Vincent chega a Bruxelas. Volta a Borinage. Durante o terrível inverno de 1879-1880 leva uma vida de vagabundo e repete-se a mesma pergunta: "Há algo fora de minha existência? Então o que é?"Perde a fé. Desenha. Quarta exposição dos impressionistas. É acolhida mais favoravelmente que as anteriores. Mas a maioria vive em grande miséria. Morre Daumier.
1880 - Após uma viagem decepcionante para a Holanda, na casa de seus familiares, recebe 50 francos de Theo. Volta a Borinage e se reconcilia com Theo, a quem não escrevia há 9 meses. Põe-se a desenhar com grande intensidade.
1881 - Vincent permanece em Bruxelas até princípios de abril. Chega a Etten no dia 12 deste mes. Trabalha. Durante o verão recebe visita de Theo e de Van Rappard e vai para casa de seu primo, o pintor Anton Mauve, que lhe dá conselhos. Volta a se enamorar e corteja apaixonadamente uma de suas primas, Kee, durante as férias em Etten. Esta o desencoraja; Vincent insiste e ela se vê obrigada a voltar para Amsterdam. Vincent a aflige com cartas e finalmente vai para Amsterdam. Mas Kee se nega a vê-lo. Desesperado, Vincent volta a Etten. Discute constantemente com seu pai e deixa a casa de Mauve em Haia.
1882 - As relaçõer com Mauve logo se tornam tensas. Vincent precipita o rompimento ao acolher uma mulher pobre, doente e grávida. Graças a essa mulher, Sien, Vincent recupera seu equilíbrio e, após uma visita a Theo, põe-se a pintar. Mas a degradação de Sien é irremediável. Vincente priva-se de tudo. O desenho "Tristeza"é dessa época.
1883 - Doente e esgotado, Vincent aguenta alguns meses. Chega a tal extremo de debilitamento que chama seu irmão, quedesta vez consegue afastar Sien de seu lado. Vincent, dilacerado, mas aliviado, volta a pintar. Deixa Haia em setembro e chega em Drenthe. As paisagens desta região selvagem o acalmam a princípiio, mas os dias atormentados voltam. Mil terrores assaltam Vincent, que foge para Nuenen, onde seus pais estavam morando. Gauguin deixa seu trabalho como bancário, para voltar-se para a pintura.
1884 - Quando sua mãe fratura uma perna, Vincent retorna por um tempo a seu lar. Mas seu desacordo com o mundo de sua família não tem solução. Vincent converte-se em um estranho de sua família. Aluga dois quartos com o sacristão da Igreja católica e ali instala seu estúdio. uma última, e como as anteriores, desafortunada aventura sentimental o faz perder totalmente a esperança de levar uma vida normal ( outono ). A pintura será a única finalidade de sua existência.
1885 - 26 de março. O pastor van Gogh morre de repente. Sela-se a ruptura de Vincent com sua família. Vincent agora trabalha em seu grande quadro do período holandês, "Comedores de Batatas". Vincent a cada dia mais toma consciência dos recursos da cor. A Holanda, cujo clima estético e moral é de agora em diante um obstáculo a seu florescimento, já não tem mais nada a lhe ensinar. Em 23 de Novembro começa sua grande viagem para o Sul. Para Vincent, a Antuérpia representa uma liberação. Ali descobre Rubens, a cor, os tecidos japoneses, a luz e o movimento. Suas cores se definem .
1886 - 18 de janeiro. Vincent se inscreve na academia de belas-artes de Antuérpia, onde sua curta e tormentosa estada pelo menos lhe permite comprovar que está no caminho certo no que se refere ao desenho e à pintura. No princípio de março de repente chega a Paris. Bolta para a escola, segue o curso do estúdio de Cormon, mas logo deixa de assistí-lo. Descobre a pintura"luminosa" dos impressionistas, estuda a obra de Delacroix, de Monticelli, os artistas japoneses e conhece Toulouse-Lautrec, Emile Bernard, Gauguin, Seurat, Signac, Guillaumin, Pissarro, Cézanne, tio Tanguy,etc. Sua palheta se torma mais luminosa. Oitava e última exposição dos impressionistas.
1887 - Vincent continua suas experiências, com todos os procedimentos e técnicas que os pintores de Paris lhe sugerem. Pinta nas margens do Sena, frequentadas pelos impressionistas. Apesar das numerosas e variadas influências, continua sendo ele mesmo, e assimila as lições à sua própria personalidade. Já se cansa de Paris. Uma aventura que termina de maneira lamentável, a decepção que lhe causam as rivalidades entre os pintores, a indiferença com que é recebido, a agitação da grande cidade. Está mais ou menos doente, mas sobretudo compreende que Paris não é sua meta. Seu cansaço e nervosismo aumentam ainda mais durante o inverno.
1888 - Vincent chega a Arles em fevereiro. Fica encantado com o país. Acredita realmente estar no Japão. Os jardins florescidos o embriagam de felicidade. Pinta sem parar. Sua exaltação cresce à medida que o sol nasce, ao qual rende um verdadeiro culto com sua pintura. Mas o espantoso desgaste nervoso com que Vincent paga por esta orgia criadora coloca em perigo sua sáude, além do fato de que não podia alimentar-se pior. Vincent quer que seu amigo Gauguin se instale perto dele e que se fundem os estúdios do sul, com que sonhava desde que saiu de Paris. Porém, os dois artistas não eram feitos para se entenderem. Tudo os separa; seus temperamentos e tendências estéticas. Logo se torna evidente que a vida em comum entre eles é impossível. Isto representa um novo e grave golpe para Vincent. Em 25 de dezembro o drama inesperadamente explode. Vincent se lança sobre Gauguin com uma navalha e sai correndo quando Gauguin se volta contra ele. Al voltar para casa, corta a orelha. Vincent é internado. Neste mesmo ano, Theo expõe no Salão dos Independentes três quadros e alguns desenhos de Vincent.
1889 - As crises continuam. Vincent procura lutar. Logo compreende que o melhor para ele é continuar internado. Em maio, abandona Arles para ir a Saint-Paul-de-Mausole, clínica particular perto de Saint-Rémy dirigida pelo doutor Peyron. A princípio se acostuma a esta nova vida. Mas, contrariamente a suas esperanças, a loucura não o abandona. Uma nova crise o invade: não continua em Saint-Rémy e volta para o norte. Apesar da enfermidade, não deixa de trabalhar. Sua arte cada vez mais se torna expressionista. No natal, tem dois ataques. Dois quadros de Vincent são expostos no Salão dos Independentes por Theo.
1890 - Boas notícias; o nascimento do filho de Theo, a vende de um quadro "A videira vermelha", o único que Vincent vendeu em vida. Nada disso pode fazer com que Vincent esqueça seu drama. Uma longa crise o lança num atroz desespero. Tenta matar-se. Não podendo suportar a vida , implora ao seu irmão que o leve para o norte. Chega a Paris em 17 de maio, mas segue para Auvers-sur-Oise em 21 de maio. Em Auvers, o doutor o atende. Começa bem sua permanência nesta pequena cidade. Vincent pinta todos os dias. Mas depois de visitar seu irmão e a cunhada, retorna desesperado para Auvers. A vida, como ele diz, lhe escapa. Não pode mais. Em 27 de julho Vincent dá um tiro no peito. Morre no dia 29 a uma e meia da manhã. Dez quadros de Vincent são expostos neste ano no Salão dos Independentes. Depois de sua morte, Theo trata de fazer uma grande exposição de suas obras. Em 18 de setembro escreve a Emile Bernard: "A quantidade de quadros é imponente. Não consigo organizar um conjunto que possa dar uma idéia de sua obra". Durand-Ruel, tomado por maus pressentimentos, se recusa a apresentar esta exposição em sua galeria. Theo, atacado de paralisia, é levado para a Holanda. Gauguin escreve para Emile Bernard: "O ataque de loucura de van Gogh( Theo ) é uma desgraça para mim e se Charlopin não me dá algo para ir para o Taiti estou perdido". Gauguin aconselha formalmente Emile Bernard a não organizar a exposição de
Van Gogh: "Que fatalidade! Você sabe quanto amo a arte de Vincent. Mas, dada a estupidez do público, é inoportuno recordar Vincent e sua loucura no momento em que seu irmão se encontra na mesma situação. Muitas pessoas dizem que nossa pintura é uma loucura. Seria um prejuízo para nós, sem fazer bem a Vincent,etc. Enfim, faça-o, mas é IDIOTA". Em 21 de janeiro Theo van Gogh morre na Holanda. ( Em seu testamento a obra de Vincent é avaliada modestamente em dois mil florins; muitas pessoas aconselham a viúva de Theo a destruí-la.) Retrospectiva de van Gogh no Salão dos Independentes.
1892 - Sob os cuidados da senhora J. van Gogh- Bonger, viúva de Theo, organiza-se uma exposição de 100 quadros e desenhos de van Gogh no Panorama de Amsterdam.
1893 - Começam a aparecer excertos das cartas de van Gogh a Emile Bernard e a seu irmão Theo. Emile Bernard organiza uma exposição de 16 quadros de van Gogh em "Le Marc de Boutteville", na rua Le Peletier, de Paris.
1905 - Sob os cuidados da senhora van Gogh - Bonger, abre-se uma exposição de473 obras de van Gogh ( 234 são quadros ) no Museu Stedelijk, de Amsterdam. Exposição de van Gogh na galeria Arnold, em Dresde.
1909 - Segunda exposição de van Gogh na galeria Druet na rua Royale. Exposição de van Gogh na galeria Brack, de Munique.
1914 - A senhora Van Gogh - Bonger publica em Amsterdam as cartas de Vincent a Theo. Outras exposições.
1946 - Uma exposição itinerante de 172 quadros de van Gogh percorre a Europa, suscitando em todas as partes um enorme entusiasmo. 165 mil a visitam em
Estocolmo; 300 mil em Amsterdam; 500 mil na Bélgica.
1953 - O centenário do nascimento de van Gogh é celebrado com grande regozijo nos Países Baixos. Um congresso de alguns milhares de especialistas de todo
o mundo sobre Van Gogh se reúne em Haia de 27 a 28 de março. Uma exposição comemorativa de 280 obras em Haia, no Museu Nacional de Kröller-Müller,
em Amsterdam.
1958 - Em outubro, em Londres, "Jardim Público de Arles ", de van Gogh, é vendido na Galeria Goldschmidt por 132 mil libras esterlinas.



29.8.06

Eugène Delacroix

Num casarão da praça Fürstenberg, em Saint-Germain-des-Prés, na margem esquerda do Sena, um homem franzino, doente e inquieto, vestido em peliças e grossas mantas de lã, está mergulhado no trabalho. Jenny, sua fiel e velha governanta, recebeu ordens severas para não deixar entrar visitas importunas. O trabalho - pintar e escrever - deve ser perturbado o menos possível. É um rito, um ato de magia. Por meio desse trabalho, pelo que significa em criação e expansão de sentimentos, é que a realidade pode ser subjetivamente transfigurada para amoldar-se às exigências da fantasia. Pela arte, pensa o homem, é que o cotidiano pode ser afugentado. Por meio da arte é que podem ganhar forma os devaneios de glória e aventura, de paixões e sacrifícios. E esse ideal romântico, pensa também, é o único a dar sentido à existência.

Não é de admirar que Ferdinand Victor Eugène Delacroix acreditasse em tais idéias. Afinal, eram as idéias de seu meio e de seu tempo. Eram compartilhadas - ou melhor, sentidas - por muita gente ilustre, por escritores, como Stendhal, Victor Hugo, Alexandre Dumas; poetas, como Baudelaire; compositores, como Paganini e Chopin. Afinal, eram as idéias de Paris de meados do século XIX. Haviam dado alento à luta pela liberdade e pelos direitos do indivíduo, na Revolução Republicana; nutriram-se nos delírios de grandeza de Napoleão; e depois da humilhação de Waterloo ressurgiram nos salões sofisticados, assim como ressurgira o nome dos Bourbon no trono da França.
Nas artes, os românticos foram os primeiros a pôr em questão os ideais clássicos, herdados da Grécia e de Roma pela via do Renascimento. Defenderam a concepção de que o valor de uma obra não devia ser medido pelo respeito a regras cristalizadas e substancialmente acadêmicas, mas em vista da emoção que pode provocar. Um artista - diziam - não se avalia por sua afinidade aos padrões antigos ou por seu grau de aproximação a modelos clássicos, mas sim de acordo com sua originalidade. Nesse sentido, o Romantismo foi um movimento renovador, que multiplicou as possibilidades de expressão nas artes em geral, principalmente na literatura e na música.
Na pintura, nem tanto.

Exceção feita a Delacroix, Géricault e alguns outros nomes, a linguagem da pintura francesa permaneceu quase inalterada. Só com a revolução realista a partir da segunda metade do século XIX é que os cânones tradicionais receberiam o golpe fatal. O Romantismo na pintura traduziu-se principalmente numa troca de roupas: as túnicas greco-romanas que vestiam os personagens focalizados foram substituídas pelas armaduras dos guerreiros medievais. Os heróis míticos cederam lugar aos cavaleiros cristãos, defensores das nacionalidades européias.
E na virada do século XVIII é justamente o nacionalismo - despertado pela Revolução Francesa e fortalecido pelos projetos de Bonaparte - que dá o tom nas idéias políticas.
Mesmo Delacroix, pensasse o que pensasse, não chegou a ser um pintor romântico no pleno sentido da palavra. Apesar de seu amor pela aventura, seu fascínio pelo Oriente fantástico, seu interesse desmedido por tudo o que fosse exótico, não voltou as costas aos antigos mestres. Como qualquer artista acadêmico, freqüentou os museus para copiar os grandes do passado. Nem se furtou em suas obras às sugestões mitológicas da Antigüidade. Ficou a meio caminho entre a lealdade cultural ao mundo clássico e a necessidade de exprimir o mundo interior, rico de sensibilidade e imaginação. Quando a subjetividade prevalecia, conseguia desprezar as regras ortodoxas. E o resultado era uma
pintura original e profundamente renovadora.
Renovação era a palavra que corria de boca em boca na França dos últimos anos do século XVIII, tirando seu alento dos feitos do novo comandante do exército, o pequeno general corso que se chamava Napoleão. Em 1798, um ano antes do golpe de Estado que o levaria ao poder, Napoleão chefiava as tropas da República na campanha do Egito; naquele ano, a 26 de abril, na localidade de Charenton-Saint-Maurice, perto de Paris, nascia Delacroix.
O menino foi registrado com o nome de Ferdinand Victor Eugène, filho de Charles Delacroix e Victoire Delacroix. Ele, importante figura política, ex-deputado, ex-
ministro das Relações Exteriores, então embaixador da França junto ao Governo holandês. Ela, jovem e bonita dama da alta sociedade, filha do decorador alemão Oeben, desenhista de móveis na corte de Luís XV e Luís XVI.
Entretanto, os historiadores menos discretos têm outra versão quanto à paternidade de Eugène. O futuro pintor, afirmam, era filho ilegítimo de Talleyrand, que se tomaria célebre como chanceler de Napoleão e que, graças à sua extraordinária habilidade política, manteria o lugar mesmo depois da queda do imperador e passaria à história com o apelido de "Diabo Coxo".

Charles Delacroix era um homem doente e viria a falecer em 1805. No ano seguinte, a viúva mudou-se para Paris e matriculou o filho no Liceu Imperial, como fora rebatizado o velho e aristocrático Liceu Louis le Grand, do Quartier Latin. Personalidades de destaque na política, nas finanças e na arte haviam passado por esse colégio. Poucos anos antes de Delacroix, ali estudara Géricault, cujas futuras obras apressariam a transformação da pintura francesa e que seria um dos amigos mais chegados de Eugène. O forte do liceu eram as letras clássicas. Mas o forte do aluno Delacroix revelou-se outro: o desenho. Um seu tio, H. F. Riesener, também pintor, percebe - e estimula - a extraordinária vocação do rapaz. Leva-o ao estúdio de outro colega, o neoclássico Guérin, de quem Eugène aprenderá
as técnicas e os truques da arte de pintar, mas não o estilo ou a concepção de pintura. Mais por uma questão de temperamento do que por uma avaliação intelectual dos trabalhos, Delacroix sente-se atraído por Veronese, Tintoretto,
Goya e Rubens, cujas obras pode ver nos museus de Paris, e os prefere a um Rafael ou a outros mestres consagrados e em evidência na época.
O temperamento é um dado fundamental na história do pintor. Como escreveria seu amigo e crítico, o poeta Baudelaire, "a biografia de Eugène Delacroix é pouco movimentada. Para um homem como ele, pleno de tal coragem e de tal paixão, as lutas mais interessantes são as que deve sustentar contra si próprio". São os sentimentos, não tanto os fatos, que determinam as atitudes do artista. Se isso vale para Delacroix adulto, não vale para Delacroix mocinho. Pelo menos, a ser verdade o que narra o escritor romântico Alexandre Dumas: que, até os treze anos, escapou de morrer por estrangulamento, incêndio, afogamento, envenenamento e sufocamento: o responsável involuntário pelo estrangulamento foi seu próprio irmão mais velho, oficial de cavalaria, que por brincadeira o suspendeu amarrando-lhe as rédeas do cavalo ao pescoço e depois soltou-o de chofre. Eugène ficou preso sem que os pés atingissem o chão, como um enforcado.
O incêndio ocorreu quando Eugène dormia: o mosquiteiro da cama pegou fogo; mas as queimaduras foram leves. O afogamento deu-se no mar. O garoto escapou dos braços da ama e uma onda mais forte quase o levou de vez. Ele também não sabia que tinta é substância altamente tóxica; tanto assim que um belo dia resolveu ingerir o conteúdo de um tubo de tinta de pintura. Escapou por pouco.
Finalmente, ao engolir gulosa e apressadamente um cacho de uvas, ficou com algumas entaladas na garganta; não fosse alguém acudir imediatamente e as conseqüências poderiam ser menos anedóticas.
Em todo o caso, superadas bravamente tais peripécias, Delacroix desenvolve seu aprendizado cada vez mais na direção de um afastamento dos padrões clássicos, guiado por artistas inovadores como Gros, Gérard e - sobretudo - Géricault, que sentiram no jovem o talento e a inquietação. Com o tempo, Delacroix viu-se cada vez mais ligado a Géricault: o jovem - então com 21 anos - aceitou posar para
um quadro de seu mestre, A Balsa da Medusa, que daria muito o que falar, abrindo formalmente as hostilidades entre os seguidores da linha neoclássica e os adeptos da nova escola - os românticos. Enviado ao Salão Oficial, a Balsa da Medusa sofreu cerrados ataques dos críticos ortodoxos; os adjetivos dirigidos a Gericault não foram dos mais brandos. Nessa querela, o ainda desconhecido Eugéne Delacroix interveio a favor do artista e acusou seus acusadores: foi a única vez que Delacroix participou ativamente das polêmicas estéticas. Nos anos vindouros, outros artistas brigarão por ele.
Em 1822, após ter realizado algumas obras de temas sacros, resolveu enviar sua primeira tela ao Salão. É Dante e Virgílio no Inferno (prancha 1), onde se vêem as influências do discutido trabalho de Géricault. imediatamente, o pintor de 24 anos polariza sobre si a atenção geral e afirma-se como o expoente de uma nova tendência, a resposta mais brilhante ao consagrado Ingres, mestre do Neoclassicismo. Não que o estilo tradicional tenha deixado de existir nessa obra de estréia, mas as cores vivas, o movimento dos personagens, as luzes do horizonte indicam já uma orientação diferente.
Essa orientação fica ainda mais explícita com Dois. Indianos, pintado em 1823. Este quadro revela gosto de Deslacrais pelo exótico - na própria escolha do tema - e, mais que isso, sua habilidade como pintor, seu espírito independente, a espontaneidade com que é capaz de cercar as figuras da pequena tela. Fugindo às descrições de moradas - e cerebrais - prefere captar as emoções dos retratados com toques rápidos e sugestivos, conseguindo ainda um efeito de primeira ordem ao contrastar o branco da vestimentas com o fundo sombrio.

No ano seguinte, Delacroix produz Os Massacres de Quios, quadro de inspiração literária, e enviado ao Salão. Reabre-se a polêmica: os críticos acadêmicos, o
mestres oficiais, decididamente torcem o nariz ante a obra Afinal, aceito o quadro, Delacroix ainda introduz nele algumas modificações, provocadas pela descoberta do inglês Constable: naqueles dias, o pintor fazia uma exposição em Paris e Delacroix, ao vê-la, é tomado pelo maior dos entusiasmos, a ponto de aproveitar as lições do pintor estrangeiro mesmo numa obra já realizada.

Tomando como tema as perseguições sofridas pelo povo grego sob o jugo turco - assunto sobre o qual Delacroix fizera algumas leituras -, Os Massacres de Quios mostra claramente o que os contemporâneos do artista não souberam ver: que a arte de Delacroix, conquanto fosse inovador estava longe de assumir um caráter revolucionário ou significar um rompimento radical com a pintura clássica. São teatrais as atitudes dos personagens. Sua disposição segue o figurino tradicional. Mesmo as cores - exageradamente violentas aos olhos rigorosos da sobriedade acadêmica - não conflitam com a estética vigente. A novidade localiza-se mais no tratamento realista dos detalhes - e este se de principalmente às alterações motivadas pelo contato com os trabalhos de Constable.
Delacroix sente-se de tal modo atraído pela pintura do inglês que se decide a atravessar a Mancha. Em 1825 embarca para a Inglaterra, onde passa alguns meses, admirando as paisagens, lendo o clássico Shakespeare e o romântico Byron. De volta à França, freqüenta os ambientes mais requintados da época. Elegante e simpático, torna-se amigo de celebridades do mundo artístico, entre as quais Frédéric Chopin e sua companheira George Sand. Delacroix os retratou juntos, embora mais tarde a tela viesse a ser cortada, restando apenas a cabeça do compositor.
O êxito de Delacroix não se limitava aos salões. Como bom romântico, não lhe faltaram ligações afetivas - arrebatadas todas, duradoura nenhuma: os modelos Émile e Laure, a loira e delgada Mademoiselle Mars, a misteriosa Madame Dalton, Madame de Forgette (sua prima) e, por fim, Madame de Boulanger, com quem até fugiria - na melhor tradição dos mitos românticos - para o exterior, chegando à Bélgica e Holanda.
Em 1827, Delacroix apresenta o que seria um de seus melhores quadros, um dos raros que não se ressentem de inspirações literárias ou retóricas. É a Natureza-Morta com Lagostas. Cor, desenho e composição inteiram-se numa unidade total - e poética. Paisagem, personagens, peças de caça conjugam-se como instrumentos numa orquestra afinada. Poucas vezes terá o artista consegui-lo explicar-se tão bem com uma pintura, exprimindo plenamente seus princípios reformistas. Aqui, ele abandona a literatura e cria uma mensagem baseada em recursos exclusivamente visuais. Aqui, Delacroix é absolutamente fiel à sua própria crença de que "o primeiro mérito de um quadro é ter sido feito para o olho".
Bem diverso, embora acabado naquele mesmo ano, é A forte de Sardanapalo, obra imensa, teatralizada, grandiloqüente, decadentista como uma dança dos sete véus. Inspirada na poesia de Byron, descreve o assassínio do velho rei assírio durante uma orgia. Entretanto, os corpos nus e retorcidos, o emaranhado de membros humanos, o tumulto da cena pelo exagero de elementos, acabam redimidos pelo hábil uso das cores, revelando a maturidade do pintor - então com 29 anos.

Em 1828, dá-se o acontecimento talvez mais importante na vida de Delacroix: sua visita ao Marrocos, como membro da delegação que acompanha o Conde de Momay, embaixador da França junto ao sultão daquele país. A missão do artista é documentar gente, terra e costumes, mas a importância do fato está menos nas vantagens que trará ao pintor nos círculos políticos e diplomáticos e mais em termos da expansão de seus sentimentos: o Marrocos, na visão de Delacroix, é o sonho feito existência, o mistério, o exótico, o diferente da cultura e da civilização a que está habituado e que, no fundo, o entediam. O Marrocos é a grande oportunidade que se oferece ao artista: permite que pinte não só sob inspiração de experiências literárias, intelectuais, formalizantes, mas com base em experiências pessoais, sentidas, vividas. Espontâneas.
As Mulheres de Argel é seu primeiro trabalho que reflete essa vivência. Embora os críticos façam reparos ao aproveitamento das cores - dizendo que as soluções encontradas aqui por Delacroix poderiam ser mais felizes -, é inegável a espontaneidade da obra. A maneira natural com que a cena é descrita, atingindo dimensões realistas, transmite o sentido direto da relação entre o pintor e seu tema. A literatura e o esforço de reconstrução histórica estão diluídos.
O mesmo acontece com A Agitação em Tânger , pintado por volta de 1837/38, ou seja, cerca de quatro anos depois de As Mulheres de Argel. Agora, apura-se ainda mais a expressão do artista, sua percepção apaixonada das coisas: a massa das pessoas, o céu transparente, as casas intensamente iluminadas, o jogo de luzes e sombras transmitem uma vibração sentida, que algumas décadas mais tarde explodiria no Impressionismo.
Nem sempre, porém, Delacroix poderá manter-se nesse rumo, devido às encomendas oficiais que receberá para a execução de grandes pinturas decorativas sobre motivos históricos. Até o fim da vida, sua arte consistirá numa intercalação de trabalhos poéticos, de inspiração subjetiva, e de pinturas grandiosas, narração de episódios militares, lendas medievais e mitologia pagã.
As encomendas oficiais vieram provavelmente em conseqüência dos desenhos e esboços que Delacroix enviou do Marrocos e que chamaram a atenção das personalidades públicas ligadas ao Governo. Entre elas estava o primeiro-ministro de Luís Filipe, o historiador Thiers, que já conhecia o artista havia muitos anos e o defendera, escrevendo entusiasmado artigo, contra os que criticavam em 1822
Dante e Virgílio no Inferno. Quando o pintor volta do Marrocos, os convites não tardam. Em 1833 recebe de Thiers a incumbência de pintar o Salão do Rei; em 1838, novo pedido, desta vez para decorar a biblioteca do Palácio Bourbon, sede da Câmara dos Deputados. Passam-se dois anos, outra encomenda: pintura da cúpula e de um hemiciclo no Palácio do Luxemburgo, então sede da Câmara Alta. Mas Delacroix não ficara esperando solicitações oficiais para dedicar-se a temas cívicos e políticos. Numa ocasião, voltara-se a eles espontaneamente. É julho de 1830, eclode a revolução que derruba Carlos X do trono e o substitui por Luís Filipe, filho do Duque de Orléans, chamado "Philippe Égalité" por haver participado da Revolução de 1789. O aristocrático Delacroix não participa das escaramuças. Entretanto, entusiasma-se com os acontecimentos e, tomado de súbitos amores pela democracia, pinta A Liberdade Guiando o Povo, um verdadeiro manifesto de propaganda, cujo valor - enquanto pintura - reside não na retórica mas na habilidade que o artista revela no manejo das cores. Detalhe curioso da obra é que o próprio pintor nela se fez retratar: o jovem de cartola e fuzil na mão é Delacroix.
Contudo, bem diversos serão seus sentimentos políticos na Revolução de 1848. Quando o povo invade as Tulherias e o Palais-Royal, incendiando, entre outros, o Richelieu Dizendo a Missa, do próprio Delacroix, este escreve: "O homem nasceu livre? Por mais filósofo que seja Rousseau, ninguém jamais disse maior asneira. E, no entanto, tal é a base filosófica desses senhores (os revolucionários)".
De qualquer forma, A Liberdade Guiando o Povo fecha o ciclo das quatro grandes telas de juventude (as outras são Dante e Virgílio no Inferno, Os Massacres de Quios e A Morte de Sardanapalo), que, apesar de todas as polêmicas que possam ter suscitado entre os críticos, ou talvez por causa delas mesmo, fizeram Delacroix famoso aos trinta anos de idade. Passado e futuro encontram-se nesses quatro enormes trabalhos de inspiração patriótica ou literária: a execução e os detalhes são tradicionais; a composição e o desenho, renovadores.
Em 1842, entre as encomendas reais e as saudosas lembranças da África (à qual Delacroix chamava "Oriente"), um inesperado interlúdio surge em sua obra. Talvez por fadiga, talvez por querer distanciar-se um pouco do grandioso ou do exótico, pinta A Educação da Virgem (prancha IX), em que o tema sacro - tão raro em Delacroix - é tratado de forma a sugerir meditação concentrada e atenta, calma e harmonia. Como se um momento de paz e serenidade ocupasse o espírito inquieto do artista. Mas é uma pausa breve. Mesmo quando o pintor retoma o universo religioso, com o Cristo no Lago Genesaré (prancha XIII), a agitação novamente aparece: as luzes percorrendo os corpos movimentados, as ondas altas, o barco perigosamente inclinado exprimem uma turbulência que só é quebrada pelo sono tranqüilo de Jesus, como a indicar que a fé é mais poderosa que a angústia da morte.

Delacroix é agora um homem de cinqüenta anos. A fama e o reconhecimento oficial (em 1849 passa a fazer parte do júri do Salão) não lhe atenuam os sonhos e os conflitos íntimos, da mesma forma como a doença (a então incurável laringite tuberculosa) não lhe afeta a espantosa capacidade de trabalho, da mesma forma como a necessidade que experimenta de recolher-se mais e mais não sufoca o antigo desejo de viajar: em 1850 volta à Bélgica, onde revê seus tão queridos quadros de Rubens. Aproveita a ocasião e estendi seu roteiro até a Alemanha. Quando regressa - infatigável -, começa a decoração do Museu do Louvre. Quando termina, lança-se à decoração do Salão da Paz, no Hotel di Ville. E escreve: cartas, artigos, um diário começado na juventude e interrompido de 1824 a 1847, apreciações críticas etc. E pinta seus delírios, suas lutas interiores, suas ansiedades. Em 1855, eles rebentam com A Caça aos Leões. Os tradicionalistas ficam chocados: "É um caos de tons!", exclamam. "Um absurdo tantos vermelhos, verdes, amarelos, violetas..." Baudelaire, o "poeta maldito", lhes responderá: "Jamais cores tão intensas penetraram até a alma pelo canal dos olhos". Três anos mais tarde, outro quadro, o mesmo título, as mesmas emoções, o mesmo conflito.
O "Rubens doente", "o homem do colete verde" - assim seus contemporâneos o chamavam - quase não abandona o estúdio na praça Fürstenberg. Trabalha o dia inteiro: "Que fazer no mundo, além de embebedar-se, quando chega o momento em que a realidade não está à altura do sonho?" Um dos raros amigos a quem Delacroix permite visitá-lo nota que o pintor vive ultra-agasalhado, embora o ambiente esteja tão aquecido "que até cobras poderiam ali viver felizes".

Nessa fornalha calafetada, trocada de tempos em tempo por uma estada na casa de campo em Champrosay, perto de Paris, tendo por companhia apenas sua governanta, o artista produz seus últimos trabalhos. Da lembrança do Oriente surgem Cavalos Saindo do Mar . Não é a pintura de um sexagenário. É uma alvorada de vigorosa juventude, a mesma juventude de espírito que o artista manteria até o fim. E o fim se deu a 13 de agosto de 1863. Delacroix tinha 65 anos.

24.8.06

A Rasa arrasa na França

José do Carmo Filho

23/08/2006 - Carmen Rodrigues Tatsch
Desde 2001 venho desenvolvendo pesquisa-ação, método de pesquisa que inclui a ação social, na comunidade da Rasa, Búzios. Inicialmente era um projeto de pós-doutorado vinculado à Escola de Comunicação da UFRJ. A partir de 2005, esta pesquisa passou a estar articulada à Universidade Veiga de Almeida. Em ambos projetos contamos com o apoio da FAPERJ.
O projeto visa a promoção de saúde mental e de bem-estar da comunidade e coloca em foco a questão do aumento da auto-estima, da valorização da história e da cultura da Rasa e da reelaboração das identidades. Com o decorrer da pesquisa, percebemos que não seria possível a melhoria da qualidade de vida se não incluíssemos a questão da geração de renda.
Neste momento, estamos trabalhando, juntamente com lideranças comunitárias, em um processo de auto-gestão, na implantação de um circuito turístico histórico-ecológico-antropológico e na criação do Centro Cultural da Rasa, onde todas as associações desta região estarão representadas e diversos produtos ali poderão ser comercializados.
Em julho de 2006 fui convidada a realizar palestra sobre esta pesquisa no Colóquio de Análise Institucional, na Universidade de Paris 8, França. Os especialistas ficaram entusiasmados com a complexidade metodológica da pesquisa e com a diversidade cultural da região. O prof. Remi Hess, diretor do Laboratório de Análise Institucional desta universidade, comentou sobre os vários níveis de ação e de análise do projeto que se cruzam e que apontam para diversos caminhos teórico/práticos. A profª Luccette Colin, apontou a importância de uma pesquisa que desenvolve, ao mesmo tempo, um enfoque político e subjetivo; que trabalha a questão da cidadania e também da identidade. O prof. Patrice Ville destacou a questão do saber que, em nossa proposta, não está somente do lado da ciência, da academia, mas também do lado das pessoas que participam do projeto.
Logo a seguir, fomos apresentar este trabalho no Departamento de Psicologia da Universidade de Toulouse, França. Novamente, a Rasa arrasou. Os especialistas presentes enfocaram especialmente a questão da relação entre a equipe de pesquisa e dos sujeitos pesquisados. Relatam experiências onde há mudanças de comportamento.

13.8.06

Leonardo Da Vinci

Pintor italiano, foi o maior retratista de seu tempo; nenhum artista antes dele havia capturado de maneira tão convincente a vivacidade das feições e o espírito individual.


Leonardo Da Vinci resumiu o ideal renascentista do polímata - artista, contador de anedotas, músico, cientista, matemático e engenheiro -, um homem de muitos talentos, com uma insaciável curiosidade e sede de conhecimento.

Nasceu em Anchiano, um vilarejo perto da cidadezinha de Vinci, em 15 de abril de 1452. Filho de um tabelião e de uma camponesa, Catarina, com quem o pai tinha uma ligação um tanto irregular. Leonardo cresceu no campo, onde desenvolveu um grande amor pela natureza. Quando menino pediram-lhe que desenhasse um escudo para um amigo do pai. Dizem que ele fez um bestiário extraordinário, baseado na observação real de lagartos, grilos, cobras, borboletas, gafanhotos e morcegos. Segundo os registros, foi nesta ocasião que ele revelou seu fascínio pelas formas móveis, retorcidas e vivas. Está registrado também que ele gostava de cavalos e os conhecia profundamente. Eles aparecem com tanto destaque nos seus trabalhos da maturidade que isto parece ser bastante provável.

Algum tempo antes de 1469, Leonardo foi com pai morar em Florença e, em 1472, foi aceito como membro da guilda de São Lucas, a guilda dos pintores. Seu mestre foi Andrea Verrocchio, e os registros mostram que ele continuava empregado na oficina de Verrocchio, na vila dell'Agnolo, em 1476.

É difícil avaliar a influência de Verrocchio sobre o jovem Leonardo. As formas curvas e retorcidas usadas pelo mestre certamente encontraram eco no seu aluno. As pinturas de Verrocchio possuem uma certa grandiosidade, mas não despertam realmente a imaginação, enquanto que as esculturas são mais fortes e parecem ter influenciado mais Leonardo.


Não existem provas consistentes de quando Leonardo foi para Milão, mas a primeira encomenda lá, documentada, é de 1483. O motivo da sua ida para aquela cidade não está claro; mas ele pode ter se sentido atraído pela estimulante atmosfera da corte dos Sforza, com muitos médicos, cientistas, engenheiros militares e matemáticos. Havia outros motivos para ele deixar Florença: os altos impostos faziam com que alguns mecenas nunca pagassem pelo trabalho que encomendavam; a competição profissional era extremamente dura; e a guerra e a peste eram fortes ameaças físicas.

Leonardo se estabeleceu na corte do Duque Lodovico, onde, além de pintar, seu protetor exigia seus serviços para diferentes tarefas - supervisionar pagens e instalar "aquecimento central", por exemplo. Este tipo de papel deve ter agradado imensamente tanto ao caráter quanto ao intelecto de Leonardo. De fato, numa carta, ele se descreve como engenheiro e, só de passagem, faz uma referência às suas pinturas. Durante este período também pintou retratos, executou uma importante encomenda, A Última ceia, e terminou grande parte do trabalho preliminar para o monumento aos Sforza, que nunca chegou a ser fundido.

Em 2 de outubro de 1498, Leonardo recebeu um propriedade fora da Porta Vercellina de Milão e foi indicado ingenere camerale. Esperava-se uma invasão dos franceses e ele ficou muito ocupado planejando a defesa da cidade, embora dois outros grandes trabalhos datem deste mesmo período. Colaborou também com o matemático Luca Pacioli na Divina Proprotione - os dois homens tinham ficado muito amigos desde a chegada de Pacioli a Milão.

Os franceses invadiram Milão em 1499 e Lodovico foi preso e enviado para França. Leonardo, junto com Luca Pacioli, deixou Milão depois de 18 anos com os Sforza. Provavelmente foi direto para Mântua, onde fez o retrato de Isabella D'Este. Em 24 de abril de 1500, ele voltou para Florença e encontrou uma cidade diferente da que tinha deixado cerca de 20 anos antes, passando por uma onda de revitalização do interesse religioso e com idéias republicanas na política. Leonardo conquistou quase de imediato o agrado do público, após exibir o seu cartão da Virgem e Sant'Ana planejado para ser um retábulo. Nesta época, Michelangelo tinha já assegurada a sua reputação em Florença. Estes dois gigantes nunca gostaram um do outro e Leonardo não fazia segredo do fato de considerar a escultura inferior à pintura, mas a fama de Michelangelo era um fator de atrito.


Novamente, Leonardo trabalhou como engenheiro; drenando pântanos, desenhando mapas e projetando um sistema de canais. Em Urbino, conheceu Nicolò Machiavelli, e este encontro levaria a uma íntima associação e a sua mais importante encomenda. Enquanto isso, produzia magníficos desenhos a pastel vermelho de Cesare Borgia.

Em 1503, entrou nos seus três anos de maior produção como pintor. Seu quadro mais famoso, Monalisa, com seu sorriso enigmático, pode ter sido pintado nesta época. Grande parte dos trabalhos de Leonardo em Florença, feitos no período de 1503 e 1507, se perdeu, inclusive Leda. Achava a mecânica da pintura uma coisa entediante e preferiu concentrar suas habilidades imaginativas no desenho e no planejamento de suas composições.

Como resultado da sua florescente associação com Machiavelli, Leonardo recebeu uma encomenda para pintar um afresco na Sala del Gran Consiglio do Palazzo Vecchio. Começou trabalhar no cartão para o afresco - a Batalha de Anghiari - em outubro de 1503, mas parece que o progresso foi lento. Leonardo terminou seu cartão no final de 1504 e começou a pintar usando uma técnica incomum e possivelmente incáustica. A tinta secou de forma desigual e a pintura não deu certo. O aresco ficou inacabado mas, depois, foi feita uma moldura especial para a parte terminada e há quem a considere a melhor coisa a se ver numa visita a Florença . Posteriormente foi repintada por Vasari.

Durante o ano de 1507, Leonardo trabalhou para o Rei da França, embora seu mecenas imediato fosse Charles d'Amboise , lord de Chaumant e governador de Milão. De muitas formas, d'Amboise reinstalou as glórias da corte dos Sforza. Leonardo estava no seu elemento, trabalhando como pintor, engenheiro e conselheiro artístico em geral. D'Amboise morreu em 1511, mas Leonardo permaneceu em Milão até 24 de setembro de 1513. Depois foi para Roma, levado, como tantos, por Giovani de Medici que havia se tornado recentemente Papa Leão X.

Leonardo se instalou no Belvedere do Vaticano, mas a agitação provocada pelos principais artistas do país e suas comitivas, vivendo todos juntos, não lhe agradava. a incontestável posição de Michelangelo em Roma, resultante do seu trabalho na Capela Sistina, também lhe era intragável. Talvez a fascinação obsessiva de Leonardo pelo poder da água e os seus diversos esboços para o Dilúvio reflitam uma turbulência mental e espiritual.

O último quadro pintado por Leonardo que sobreviveu é, quase certamente, São João e deve ter sido feito em 1514-1515. Em março de 1516, Leonardo aceitou o convite de Francisco I para morar na França e ganhou uma propriedade rural perto de Cloux. Em 10 de outubro de 1517, recebeu a visita do Cardeal Luís

de Aragão, cujo secretário escreveu um relatório do encontro. Ele menciona três quadros, dois que podemos identificar como sendo Virgem e o Menino com Sant'Ana e São João, o terceiro é um retrato de uma dama florentina. Ele também afirma que Leonardo estava sofrendo de um tipo de paralisia na mão direita. Leonardo era canhoto, mas esta observação pode ter, na verdade, se referido à sua mão "de trabalho", significando a esquerda. Observando-se os manuscritos, fica óbvio que esta paralisia não impediu Leonardo de usar os dedos, porque sua letra estava clara e firme como sempre. Alguns desenhos, entretanto, mostram uma falta de firmeza e precisão que sugerem que o problema possa ter afetado o movimento do braço.

Em 2 de maio de 1519, Leonardo morreu em Cloux. Deixou os desenhos e manuscritos para o amigo fiel Francesco Melzi, enquanto viveu, Melzi guardou as obras com todo carinho, mas cometeu a insensatez de não incluir no seu testamento nenhuma cláusula que garantisse a continuidade deste cuidado. O filho, Orazio, que não tinha o mínimo interesse por artes ou ciências, deixou que esta inestimável coleção se deteriorasse, se perdesse, fosse roubada ou vandalizada de uma maneira que só se pode descrever como criminosa.