29.8.06

Eugène Delacroix

Num casarão da praça Fürstenberg, em Saint-Germain-des-Prés, na margem esquerda do Sena, um homem franzino, doente e inquieto, vestido em peliças e grossas mantas de lã, está mergulhado no trabalho. Jenny, sua fiel e velha governanta, recebeu ordens severas para não deixar entrar visitas importunas. O trabalho - pintar e escrever - deve ser perturbado o menos possível. É um rito, um ato de magia. Por meio desse trabalho, pelo que significa em criação e expansão de sentimentos, é que a realidade pode ser subjetivamente transfigurada para amoldar-se às exigências da fantasia. Pela arte, pensa o homem, é que o cotidiano pode ser afugentado. Por meio da arte é que podem ganhar forma os devaneios de glória e aventura, de paixões e sacrifícios. E esse ideal romântico, pensa também, é o único a dar sentido à existência.

Não é de admirar que Ferdinand Victor Eugène Delacroix acreditasse em tais idéias. Afinal, eram as idéias de seu meio e de seu tempo. Eram compartilhadas - ou melhor, sentidas - por muita gente ilustre, por escritores, como Stendhal, Victor Hugo, Alexandre Dumas; poetas, como Baudelaire; compositores, como Paganini e Chopin. Afinal, eram as idéias de Paris de meados do século XIX. Haviam dado alento à luta pela liberdade e pelos direitos do indivíduo, na Revolução Republicana; nutriram-se nos delírios de grandeza de Napoleão; e depois da humilhação de Waterloo ressurgiram nos salões sofisticados, assim como ressurgira o nome dos Bourbon no trono da França.
Nas artes, os românticos foram os primeiros a pôr em questão os ideais clássicos, herdados da Grécia e de Roma pela via do Renascimento. Defenderam a concepção de que o valor de uma obra não devia ser medido pelo respeito a regras cristalizadas e substancialmente acadêmicas, mas em vista da emoção que pode provocar. Um artista - diziam - não se avalia por sua afinidade aos padrões antigos ou por seu grau de aproximação a modelos clássicos, mas sim de acordo com sua originalidade. Nesse sentido, o Romantismo foi um movimento renovador, que multiplicou as possibilidades de expressão nas artes em geral, principalmente na literatura e na música.
Na pintura, nem tanto.

Exceção feita a Delacroix, Géricault e alguns outros nomes, a linguagem da pintura francesa permaneceu quase inalterada. Só com a revolução realista a partir da segunda metade do século XIX é que os cânones tradicionais receberiam o golpe fatal. O Romantismo na pintura traduziu-se principalmente numa troca de roupas: as túnicas greco-romanas que vestiam os personagens focalizados foram substituídas pelas armaduras dos guerreiros medievais. Os heróis míticos cederam lugar aos cavaleiros cristãos, defensores das nacionalidades européias.
E na virada do século XVIII é justamente o nacionalismo - despertado pela Revolução Francesa e fortalecido pelos projetos de Bonaparte - que dá o tom nas idéias políticas.
Mesmo Delacroix, pensasse o que pensasse, não chegou a ser um pintor romântico no pleno sentido da palavra. Apesar de seu amor pela aventura, seu fascínio pelo Oriente fantástico, seu interesse desmedido por tudo o que fosse exótico, não voltou as costas aos antigos mestres. Como qualquer artista acadêmico, freqüentou os museus para copiar os grandes do passado. Nem se furtou em suas obras às sugestões mitológicas da Antigüidade. Ficou a meio caminho entre a lealdade cultural ao mundo clássico e a necessidade de exprimir o mundo interior, rico de sensibilidade e imaginação. Quando a subjetividade prevalecia, conseguia desprezar as regras ortodoxas. E o resultado era uma
pintura original e profundamente renovadora.
Renovação era a palavra que corria de boca em boca na França dos últimos anos do século XVIII, tirando seu alento dos feitos do novo comandante do exército, o pequeno general corso que se chamava Napoleão. Em 1798, um ano antes do golpe de Estado que o levaria ao poder, Napoleão chefiava as tropas da República na campanha do Egito; naquele ano, a 26 de abril, na localidade de Charenton-Saint-Maurice, perto de Paris, nascia Delacroix.
O menino foi registrado com o nome de Ferdinand Victor Eugène, filho de Charles Delacroix e Victoire Delacroix. Ele, importante figura política, ex-deputado, ex-
ministro das Relações Exteriores, então embaixador da França junto ao Governo holandês. Ela, jovem e bonita dama da alta sociedade, filha do decorador alemão Oeben, desenhista de móveis na corte de Luís XV e Luís XVI.
Entretanto, os historiadores menos discretos têm outra versão quanto à paternidade de Eugène. O futuro pintor, afirmam, era filho ilegítimo de Talleyrand, que se tomaria célebre como chanceler de Napoleão e que, graças à sua extraordinária habilidade política, manteria o lugar mesmo depois da queda do imperador e passaria à história com o apelido de "Diabo Coxo".

Charles Delacroix era um homem doente e viria a falecer em 1805. No ano seguinte, a viúva mudou-se para Paris e matriculou o filho no Liceu Imperial, como fora rebatizado o velho e aristocrático Liceu Louis le Grand, do Quartier Latin. Personalidades de destaque na política, nas finanças e na arte haviam passado por esse colégio. Poucos anos antes de Delacroix, ali estudara Géricault, cujas futuras obras apressariam a transformação da pintura francesa e que seria um dos amigos mais chegados de Eugène. O forte do liceu eram as letras clássicas. Mas o forte do aluno Delacroix revelou-se outro: o desenho. Um seu tio, H. F. Riesener, também pintor, percebe - e estimula - a extraordinária vocação do rapaz. Leva-o ao estúdio de outro colega, o neoclássico Guérin, de quem Eugène aprenderá
as técnicas e os truques da arte de pintar, mas não o estilo ou a concepção de pintura. Mais por uma questão de temperamento do que por uma avaliação intelectual dos trabalhos, Delacroix sente-se atraído por Veronese, Tintoretto,
Goya e Rubens, cujas obras pode ver nos museus de Paris, e os prefere a um Rafael ou a outros mestres consagrados e em evidência na época.
O temperamento é um dado fundamental na história do pintor. Como escreveria seu amigo e crítico, o poeta Baudelaire, "a biografia de Eugène Delacroix é pouco movimentada. Para um homem como ele, pleno de tal coragem e de tal paixão, as lutas mais interessantes são as que deve sustentar contra si próprio". São os sentimentos, não tanto os fatos, que determinam as atitudes do artista. Se isso vale para Delacroix adulto, não vale para Delacroix mocinho. Pelo menos, a ser verdade o que narra o escritor romântico Alexandre Dumas: que, até os treze anos, escapou de morrer por estrangulamento, incêndio, afogamento, envenenamento e sufocamento: o responsável involuntário pelo estrangulamento foi seu próprio irmão mais velho, oficial de cavalaria, que por brincadeira o suspendeu amarrando-lhe as rédeas do cavalo ao pescoço e depois soltou-o de chofre. Eugène ficou preso sem que os pés atingissem o chão, como um enforcado.
O incêndio ocorreu quando Eugène dormia: o mosquiteiro da cama pegou fogo; mas as queimaduras foram leves. O afogamento deu-se no mar. O garoto escapou dos braços da ama e uma onda mais forte quase o levou de vez. Ele também não sabia que tinta é substância altamente tóxica; tanto assim que um belo dia resolveu ingerir o conteúdo de um tubo de tinta de pintura. Escapou por pouco.
Finalmente, ao engolir gulosa e apressadamente um cacho de uvas, ficou com algumas entaladas na garganta; não fosse alguém acudir imediatamente e as conseqüências poderiam ser menos anedóticas.
Em todo o caso, superadas bravamente tais peripécias, Delacroix desenvolve seu aprendizado cada vez mais na direção de um afastamento dos padrões clássicos, guiado por artistas inovadores como Gros, Gérard e - sobretudo - Géricault, que sentiram no jovem o talento e a inquietação. Com o tempo, Delacroix viu-se cada vez mais ligado a Géricault: o jovem - então com 21 anos - aceitou posar para
um quadro de seu mestre, A Balsa da Medusa, que daria muito o que falar, abrindo formalmente as hostilidades entre os seguidores da linha neoclássica e os adeptos da nova escola - os românticos. Enviado ao Salão Oficial, a Balsa da Medusa sofreu cerrados ataques dos críticos ortodoxos; os adjetivos dirigidos a Gericault não foram dos mais brandos. Nessa querela, o ainda desconhecido Eugéne Delacroix interveio a favor do artista e acusou seus acusadores: foi a única vez que Delacroix participou ativamente das polêmicas estéticas. Nos anos vindouros, outros artistas brigarão por ele.
Em 1822, após ter realizado algumas obras de temas sacros, resolveu enviar sua primeira tela ao Salão. É Dante e Virgílio no Inferno (prancha 1), onde se vêem as influências do discutido trabalho de Géricault. imediatamente, o pintor de 24 anos polariza sobre si a atenção geral e afirma-se como o expoente de uma nova tendência, a resposta mais brilhante ao consagrado Ingres, mestre do Neoclassicismo. Não que o estilo tradicional tenha deixado de existir nessa obra de estréia, mas as cores vivas, o movimento dos personagens, as luzes do horizonte indicam já uma orientação diferente.
Essa orientação fica ainda mais explícita com Dois. Indianos, pintado em 1823. Este quadro revela gosto de Deslacrais pelo exótico - na própria escolha do tema - e, mais que isso, sua habilidade como pintor, seu espírito independente, a espontaneidade com que é capaz de cercar as figuras da pequena tela. Fugindo às descrições de moradas - e cerebrais - prefere captar as emoções dos retratados com toques rápidos e sugestivos, conseguindo ainda um efeito de primeira ordem ao contrastar o branco da vestimentas com o fundo sombrio.

No ano seguinte, Delacroix produz Os Massacres de Quios, quadro de inspiração literária, e enviado ao Salão. Reabre-se a polêmica: os críticos acadêmicos, o
mestres oficiais, decididamente torcem o nariz ante a obra Afinal, aceito o quadro, Delacroix ainda introduz nele algumas modificações, provocadas pela descoberta do inglês Constable: naqueles dias, o pintor fazia uma exposição em Paris e Delacroix, ao vê-la, é tomado pelo maior dos entusiasmos, a ponto de aproveitar as lições do pintor estrangeiro mesmo numa obra já realizada.

Tomando como tema as perseguições sofridas pelo povo grego sob o jugo turco - assunto sobre o qual Delacroix fizera algumas leituras -, Os Massacres de Quios mostra claramente o que os contemporâneos do artista não souberam ver: que a arte de Delacroix, conquanto fosse inovador estava longe de assumir um caráter revolucionário ou significar um rompimento radical com a pintura clássica. São teatrais as atitudes dos personagens. Sua disposição segue o figurino tradicional. Mesmo as cores - exageradamente violentas aos olhos rigorosos da sobriedade acadêmica - não conflitam com a estética vigente. A novidade localiza-se mais no tratamento realista dos detalhes - e este se de principalmente às alterações motivadas pelo contato com os trabalhos de Constable.
Delacroix sente-se de tal modo atraído pela pintura do inglês que se decide a atravessar a Mancha. Em 1825 embarca para a Inglaterra, onde passa alguns meses, admirando as paisagens, lendo o clássico Shakespeare e o romântico Byron. De volta à França, freqüenta os ambientes mais requintados da época. Elegante e simpático, torna-se amigo de celebridades do mundo artístico, entre as quais Frédéric Chopin e sua companheira George Sand. Delacroix os retratou juntos, embora mais tarde a tela viesse a ser cortada, restando apenas a cabeça do compositor.
O êxito de Delacroix não se limitava aos salões. Como bom romântico, não lhe faltaram ligações afetivas - arrebatadas todas, duradoura nenhuma: os modelos Émile e Laure, a loira e delgada Mademoiselle Mars, a misteriosa Madame Dalton, Madame de Forgette (sua prima) e, por fim, Madame de Boulanger, com quem até fugiria - na melhor tradição dos mitos românticos - para o exterior, chegando à Bélgica e Holanda.
Em 1827, Delacroix apresenta o que seria um de seus melhores quadros, um dos raros que não se ressentem de inspirações literárias ou retóricas. É a Natureza-Morta com Lagostas. Cor, desenho e composição inteiram-se numa unidade total - e poética. Paisagem, personagens, peças de caça conjugam-se como instrumentos numa orquestra afinada. Poucas vezes terá o artista consegui-lo explicar-se tão bem com uma pintura, exprimindo plenamente seus princípios reformistas. Aqui, ele abandona a literatura e cria uma mensagem baseada em recursos exclusivamente visuais. Aqui, Delacroix é absolutamente fiel à sua própria crença de que "o primeiro mérito de um quadro é ter sido feito para o olho".
Bem diverso, embora acabado naquele mesmo ano, é A forte de Sardanapalo, obra imensa, teatralizada, grandiloqüente, decadentista como uma dança dos sete véus. Inspirada na poesia de Byron, descreve o assassínio do velho rei assírio durante uma orgia. Entretanto, os corpos nus e retorcidos, o emaranhado de membros humanos, o tumulto da cena pelo exagero de elementos, acabam redimidos pelo hábil uso das cores, revelando a maturidade do pintor - então com 29 anos.

Em 1828, dá-se o acontecimento talvez mais importante na vida de Delacroix: sua visita ao Marrocos, como membro da delegação que acompanha o Conde de Momay, embaixador da França junto ao sultão daquele país. A missão do artista é documentar gente, terra e costumes, mas a importância do fato está menos nas vantagens que trará ao pintor nos círculos políticos e diplomáticos e mais em termos da expansão de seus sentimentos: o Marrocos, na visão de Delacroix, é o sonho feito existência, o mistério, o exótico, o diferente da cultura e da civilização a que está habituado e que, no fundo, o entediam. O Marrocos é a grande oportunidade que se oferece ao artista: permite que pinte não só sob inspiração de experiências literárias, intelectuais, formalizantes, mas com base em experiências pessoais, sentidas, vividas. Espontâneas.
As Mulheres de Argel é seu primeiro trabalho que reflete essa vivência. Embora os críticos façam reparos ao aproveitamento das cores - dizendo que as soluções encontradas aqui por Delacroix poderiam ser mais felizes -, é inegável a espontaneidade da obra. A maneira natural com que a cena é descrita, atingindo dimensões realistas, transmite o sentido direto da relação entre o pintor e seu tema. A literatura e o esforço de reconstrução histórica estão diluídos.
O mesmo acontece com A Agitação em Tânger , pintado por volta de 1837/38, ou seja, cerca de quatro anos depois de As Mulheres de Argel. Agora, apura-se ainda mais a expressão do artista, sua percepção apaixonada das coisas: a massa das pessoas, o céu transparente, as casas intensamente iluminadas, o jogo de luzes e sombras transmitem uma vibração sentida, que algumas décadas mais tarde explodiria no Impressionismo.
Nem sempre, porém, Delacroix poderá manter-se nesse rumo, devido às encomendas oficiais que receberá para a execução de grandes pinturas decorativas sobre motivos históricos. Até o fim da vida, sua arte consistirá numa intercalação de trabalhos poéticos, de inspiração subjetiva, e de pinturas grandiosas, narração de episódios militares, lendas medievais e mitologia pagã.
As encomendas oficiais vieram provavelmente em conseqüência dos desenhos e esboços que Delacroix enviou do Marrocos e que chamaram a atenção das personalidades públicas ligadas ao Governo. Entre elas estava o primeiro-ministro de Luís Filipe, o historiador Thiers, que já conhecia o artista havia muitos anos e o defendera, escrevendo entusiasmado artigo, contra os que criticavam em 1822
Dante e Virgílio no Inferno. Quando o pintor volta do Marrocos, os convites não tardam. Em 1833 recebe de Thiers a incumbência de pintar o Salão do Rei; em 1838, novo pedido, desta vez para decorar a biblioteca do Palácio Bourbon, sede da Câmara dos Deputados. Passam-se dois anos, outra encomenda: pintura da cúpula e de um hemiciclo no Palácio do Luxemburgo, então sede da Câmara Alta. Mas Delacroix não ficara esperando solicitações oficiais para dedicar-se a temas cívicos e políticos. Numa ocasião, voltara-se a eles espontaneamente. É julho de 1830, eclode a revolução que derruba Carlos X do trono e o substitui por Luís Filipe, filho do Duque de Orléans, chamado "Philippe Égalité" por haver participado da Revolução de 1789. O aristocrático Delacroix não participa das escaramuças. Entretanto, entusiasma-se com os acontecimentos e, tomado de súbitos amores pela democracia, pinta A Liberdade Guiando o Povo, um verdadeiro manifesto de propaganda, cujo valor - enquanto pintura - reside não na retórica mas na habilidade que o artista revela no manejo das cores. Detalhe curioso da obra é que o próprio pintor nela se fez retratar: o jovem de cartola e fuzil na mão é Delacroix.
Contudo, bem diversos serão seus sentimentos políticos na Revolução de 1848. Quando o povo invade as Tulherias e o Palais-Royal, incendiando, entre outros, o Richelieu Dizendo a Missa, do próprio Delacroix, este escreve: "O homem nasceu livre? Por mais filósofo que seja Rousseau, ninguém jamais disse maior asneira. E, no entanto, tal é a base filosófica desses senhores (os revolucionários)".
De qualquer forma, A Liberdade Guiando o Povo fecha o ciclo das quatro grandes telas de juventude (as outras são Dante e Virgílio no Inferno, Os Massacres de Quios e A Morte de Sardanapalo), que, apesar de todas as polêmicas que possam ter suscitado entre os críticos, ou talvez por causa delas mesmo, fizeram Delacroix famoso aos trinta anos de idade. Passado e futuro encontram-se nesses quatro enormes trabalhos de inspiração patriótica ou literária: a execução e os detalhes são tradicionais; a composição e o desenho, renovadores.
Em 1842, entre as encomendas reais e as saudosas lembranças da África (à qual Delacroix chamava "Oriente"), um inesperado interlúdio surge em sua obra. Talvez por fadiga, talvez por querer distanciar-se um pouco do grandioso ou do exótico, pinta A Educação da Virgem (prancha IX), em que o tema sacro - tão raro em Delacroix - é tratado de forma a sugerir meditação concentrada e atenta, calma e harmonia. Como se um momento de paz e serenidade ocupasse o espírito inquieto do artista. Mas é uma pausa breve. Mesmo quando o pintor retoma o universo religioso, com o Cristo no Lago Genesaré (prancha XIII), a agitação novamente aparece: as luzes percorrendo os corpos movimentados, as ondas altas, o barco perigosamente inclinado exprimem uma turbulência que só é quebrada pelo sono tranqüilo de Jesus, como a indicar que a fé é mais poderosa que a angústia da morte.

Delacroix é agora um homem de cinqüenta anos. A fama e o reconhecimento oficial (em 1849 passa a fazer parte do júri do Salão) não lhe atenuam os sonhos e os conflitos íntimos, da mesma forma como a doença (a então incurável laringite tuberculosa) não lhe afeta a espantosa capacidade de trabalho, da mesma forma como a necessidade que experimenta de recolher-se mais e mais não sufoca o antigo desejo de viajar: em 1850 volta à Bélgica, onde revê seus tão queridos quadros de Rubens. Aproveita a ocasião e estendi seu roteiro até a Alemanha. Quando regressa - infatigável -, começa a decoração do Museu do Louvre. Quando termina, lança-se à decoração do Salão da Paz, no Hotel di Ville. E escreve: cartas, artigos, um diário começado na juventude e interrompido de 1824 a 1847, apreciações críticas etc. E pinta seus delírios, suas lutas interiores, suas ansiedades. Em 1855, eles rebentam com A Caça aos Leões. Os tradicionalistas ficam chocados: "É um caos de tons!", exclamam. "Um absurdo tantos vermelhos, verdes, amarelos, violetas..." Baudelaire, o "poeta maldito", lhes responderá: "Jamais cores tão intensas penetraram até a alma pelo canal dos olhos". Três anos mais tarde, outro quadro, o mesmo título, as mesmas emoções, o mesmo conflito.
O "Rubens doente", "o homem do colete verde" - assim seus contemporâneos o chamavam - quase não abandona o estúdio na praça Fürstenberg. Trabalha o dia inteiro: "Que fazer no mundo, além de embebedar-se, quando chega o momento em que a realidade não está à altura do sonho?" Um dos raros amigos a quem Delacroix permite visitá-lo nota que o pintor vive ultra-agasalhado, embora o ambiente esteja tão aquecido "que até cobras poderiam ali viver felizes".

Nessa fornalha calafetada, trocada de tempos em tempo por uma estada na casa de campo em Champrosay, perto de Paris, tendo por companhia apenas sua governanta, o artista produz seus últimos trabalhos. Da lembrança do Oriente surgem Cavalos Saindo do Mar . Não é a pintura de um sexagenário. É uma alvorada de vigorosa juventude, a mesma juventude de espírito que o artista manteria até o fim. E o fim se deu a 13 de agosto de 1863. Delacroix tinha 65 anos.

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