15.10.06

Johannes Vermeer



De Johannes Veermer, pintor holandês do século XVII, pouco se sabe. Quem pretender estabelecer uma cronologia da sua vida, fica-se por algumas datas extraídas de certidões de nascimento e morte, registos de casamento ou de venda e compra de bens. Entre 1632 e 1675, nasceu, viveu e faleceu na cidade holandesa de Delft,sem deixar grande rasto,a não ser 35 obras-primas da pintura (a que parece vir juntar-se agora uma mais, descoberta e reconhecida há pouco, e que vai a leilão por estes dias) e uma catrefa de filhos (quando Vermeer morreu deixou onze em testamento e vários registros a comprovar o enterro de alguns mais, mortos pouco depois de nascerem).
Uma existência tão parca em mediatismo, se diria hoje, não transformou Vermeer num acontecimento, de um dia para o outro. Demorou séculos o seu reconhecimento. Se em vida era tido como “mestre de pintura” e por várias vezes foi eleito presidente da “Guild” numa cidade de tão grandes tradições no ofício, isso deveu-se mais ao abandono da concorrência, que viajava até à mais próspera e bem dotada Amsterdã, deixando Delft ao cuidado deste pintor de que se conhecem apenas três dezenas e meia de obras, a maioria das quais pintadas no seu atelier, com o mesmo cenário por fundo e a mesma luz a envolver as personagens.
No entanto, por essa altura, a Holanda e a vizinha Flandres eram pródigas em “mestres de pintura” e criaram uma escola onde abundavam nomes consagrados: Rembrandt e Frans Hals desde logo, mas também Van Goyen, Emmanuel de Wliete, Hendrick Averkamp,Van der Helst, Jacob Van Loo, Frans Van Meris,Willem Kalf, Nicholas Maer, Jacob Van Ruisdael, Pieter Snyders, Gabriel Van de Velde, Philips Wonwerman, Peter de Hooch, Adrien Van Ostade, Gerrit Das e etc. Pela Europa, era o tempo de Rubens, Poussin, Van Dyck, Ribera, Murillo e Velazquez. Na música, dominavam Monteverdi, Lully, Scarlatti, Couperin ou Vivaldi,enquanto nas letras Corneille,Racine e Molière davam cartas em França,ao lado de Descartes, Pascal, Rousseau, Milton, Leibniz. Nem tudo eram rosas (longe disso!): Galileu Galilei era julgado por heresia na Inquisição.Tempos conturbados,com o Cardeal Richelieu em França,Luís XIII e Luís XIV,Versailles e a guerra com a Espanha;Portugal submetido aos vizinhos Filipes, e depois de novo independente; Carlos I em Inglaterra a tentar dominar o Parlamento e a ser escorraçado por Cromwell; o Papa Inocente X; Pedro, o Grande, na Rússia; a discutida Paz de Westfália a pôr termo à Guerra dos 30 anos... Uma Europa em ebulição, atravessada por conflitos que mostravam uma burguesia em ascensão social e política, alicerçada no seu cada vez mais visível poder econômico. E a reação aristocrata a retorquir e a procurar manter ou recuperar o poder absoluto.
A Holanda livra-se do domínio espanhol em 1603 e instaura uma monarquia de características burguesas. A Flandres mantém-se sob o jugo da Coroa Espanhola. Mas o poder econômico nas Províncias Unidas dos Países Baixos está cada vez mais nas mãos de negociantes e mercadores.Tornam-se mesmo no principal centro econômico e financeiro da Europa em meados de seiscentos.Um poder econômico que Vermeer sentiu a seu lado, sob a forma de mecenas. Van Ruijven era o seu protetor, o financeiro que encomendava quadros, uns a seguir aos outros, e com o pagamento dos quais o pintor ia vivendo com a numerosa família, sempre em desequilíbrio econômico: mais as dívidas que as receitas. Um mecenato que impunha regras e ditava os motivos, recrutava modelos e deles se servia. Por essa altura, ser pintor não tinha ainda o estatuto artístico de um escritor ou músico. Assemelhava-se mais a um artesão do que a um artista.
Se os episódios da vida de Vermeer não são muito conhecidos, a lacuna não impede que a investigação de uns e a imaginação de outros procure recriar a história para se aproximar cada vez mais da essência da arte deste pintor de eleição,que fazia da cor e da luz motivos de identificação pessoal inequívoca, mesmo no quadro de uma escola que se caracterizou essencialmente por isso. A “escola da Flandres”,com Rembrandt a dominar, mas tendo em Vermeer uma referência de idêntico fulgor, fazia da luz e da cor duas das suas diferenças fundamentais, mas comportava outras especificidades que a tornavam uma das preferidas por colecionadores e comerciantes de arte da época (e de épocas posteriores, até à atualidade): os motivos que serviam de inspiração aos pintores eram de raiz doméstica, iam do retrato individual ao grupo humano, passavam por uma dignificação das profissões, logo da burguesia ascendente (muitas das telas de Vermeer são isso mesmo, o geógrafo, o astrônomo, o oficial, o professor de música, etc.) e culminavam no registro “artístico” do dia a dia (mulher a escrever carta, com garrafa de água, com o jarro do leite, com o copo de vinho, mulher escrevendo, com chapéu vermelho ou brinco de pérola, mulher a costurar, com flauta, com guitarra, etc.). Tudo burgueses bem comportados em harmonia de poses e situações que os “distinguiam” obviamente do “povo miúdo”e assim cimentavam uma reputação.
Sendo a Holanda uma região predominantemente protestante, raras eram as representações de cenas religiosas (apenas os pintores católicos as escolhiam, caso de Vermeer, que se converteu ao catolicismo quando casou com a mulher, Catharina). Mas sendo também a época fértil em guerras religiosas, a verdade é que a Flandres parece ter sido das regiões da Europa onde a tolerância e a convivência entre vários credos era mais palpável.A sua pintura é também reflexo dessa aparente calma, sublinhado o ritualismo do quotidiano, em lugar de registrar cenas bíblicas ou religiosas.
Mas há mais a considerar na arte flamenga: o uso da perspectiva que adquire com os “flamengos” uma perfeição raras vezes atingida. Neste caso, Vermeer é um mestre trabalhando num atelier onde pinta a quase totalidade das suas obras, e que surge quase sempre enquadrado de um mesmo ângulo (tendo as janelas à sua esquerda,donde nasce a luz que inunda o motivo, ou apenas ilumina um rosto, um excerto, um fragmento). Há quem diga (e há estudos científicos efetuados sobre esta hipótese, tentando comprova-la) que Vermeer pintava tendo como base uma câmara escura (câmara escura que recebia a imagem por uma lente, e a reproduzia, invertida, do lado contrário, uma das bases da fotografia e do cinema). O esboço do desenho era assim conseguido com grande rigor, permitindo ao pintor avançar posteriormente com grande segurança no seu trabalho. Com câmara escura ou sem ela,a verdade é que a perspectiva não conhecia mistérios para Vermeer, e a possibilidade de profundidade de campo que ela permitia, tornava as suas obras ainda mais cobiçadas.
Mas é na forma como a luz e a cor nos são restituídas que os quadros de Vermeer se tornaram lendários. Há um azul Vermeer inconfundível, e há uma luz coada sem paralelo. Assim se atingiu o parapeito da lenda onde hoje se encontra a obra e a vida de Vermeer. Tudo isto para se chegar a “Moça com Brinco de Pérola”, inicialmente romance de Tracy Chevalier,depois filme de Peter Webber,a justificar atenção especial,depois de ter passado pelos “Óscares”, onde o português diretor de fotografia Eduardo Serra mereceu nomeação e só não a consagração porque “O Senhor dos Anéis” estava em noite de consagração.
Com base num quadro célebre que encerra um fascínio idêntico ao do sorriso de “Mona Lisa”,o tal retrato de “Moça com Brinco de Pérola”,Tracy Chevalier imagina uma história para explicar a concepção da obra. Nada mal pensada, aliás: uma jovem, cuja família se arruinara por doença do pai,vê-se constrangida a aceitar ir servir como criada para casa do pintor Vermeer.As suas funções serão tomar conta das inúmeras crianças, tratar da lide da casa, lavar,passar a ferro,ir ao mercado comprar peixe e carne (o que faz a preceito,não só não se deixa enganar como ainda fulmina de amores o filho do talhante) e ainda limpar o atelier do pintor. Aqui demonstra não só sensibilidade e delicadeza, como também uma paixão pela arte do patrão. Passará a limpar cuidadosamente os vidros das janelas (“será que limpar o pó que nelas se acumula não irá alterar a luz da sala?”, pergunta denotando especial perspicácia), a retirar o pó de cima dos móveis, sem mexer em nada, misturar as cores das tintas até atingir o cromatismo desejado, e um dia será mesmo o modelo escolhido para posar para a eternidade com o brinco de pérola da patroa pendendo de uma das suas orelhas. O quadro é uma obra de arte, mas também uma obra de amor e desejo, que o filme deixa na penumbra da incerteza (será que aquela cena de perfurar a orelha para colocar o brinco não prefigura uma outra penetração que fica subentendida? E o humedecer dos lábios? E os olhares intensos que se cruzam e se calam? E a corrida de Griet para os braços do namorado, entregando-se em desespero ao desejo que a abrasa?). Aliás, toda a relação da jovem Griet com Vermeer é particularmente bem dada desde início, estabelecendo uma indefinida atração mútua que vai desde o fato de Griet se deixar fascinar pelas pinturas que vê (algumas de cenas religiosas que atentam contra a sua religião protestante) até ao olhar excitado que lança sobre a porta entreaberta do misterioso atelier do mestre que ela já admirava e que lhe proíbem de transpor sem autorização. Aquela sala e aquela luz serão uma obsessão. Uma obsessão pelo proibido, uma obsessão amorosa também.
O filme consegue equilibrar-se entre a biografia histórica e romanceada, entre o retrato de uma época e o drama passional, sem nunca entrar em retórica escusada. Austero e límpido como um hábito protestante, discreto e pudico na forma como esboça uma atração fatal que paira como desejo ou ameaça (igualmente desejada!), mas nunca se expressa de forma concreta, consegue um trabalho fotográfico que capta todo o fulgor das tintas e da luz do tempo e do lugar (há um plano mágico, quando surge pela primeira vez o azul que Vermeer imortalizou e que a câmara de Eduardo Serra rasga no ecrã com o brilho de uma pedra preciosa).
Excelente documento sobre um pintor e sobre um período histórico,“Moça com Brinco de Pérola” é ainda uma curiosa aproximação do ato de criar em arte, sem recorrer a estereótipos freqüentes, procurando manter-se a um nível de exigência e intransigência estética indiscutível.Que as platéias de todo o mundo apreciam e não ignoram.Excelentes actores – Colin Firth (Johannes Vermeer), Scarlett Johansson (Griet), Tom Wilkinson (Van Ruijven), Judy Parfitt (Maria Thins), Cillian Murphy (Pieter), Essie Davis (Catharina), Joanna Scanlan (Tanneke), Alakina Mann (Cornelia) – recriam personagens que conservam o mistério das suas vidas intocável, mas admitem aproximações diversas que estimulam o espectador. Um belo filme.
Nota: Não sendo um filme que tenha como tema ou cenário um castelo, é todavia uma obra que testemunha de forma interessante a vida quotidiana numa cidade e numa época dominada pelo castelo.

Fonte: http://www.famafest.org

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